sábado, 21 de fevereiro de 2015

O Pé de Zimbro

Hoje eu quero compartilhar a história de O Pé de Zimbro, de Philipp Otto Runge, extraída do livro Contos de Fadas (edição, introdução e notas Maria Tatar; tradução Maria Luiza X. de A. Borges - 1. ed. com. e il. - Rio de Janeiro: Zahar, 2013. pag. 173-185).

O Pé de Zimbro
Philipp Otto Runge

     Muito tempo atrás, nada menos que dois mil anos, havia um homem rico casado com uma mulher bonita e piedosa. Eles se amavam muito, mas não tinham filhos, por mais que os desejassem. Dia e noite a mulher rezava pedindo um filho, mas apesar disso nada conseguiam.
     Diante da casa havia um jardim, e no jardim crescia um pé de zimbro. Uma vez, durante o inverno, a mulher estava descascando uma maçã debaixo da árvore, e enquanto a descascava cotou o dedo. O sangue pingou na neve. "Ah", disse a mulher, suspirando fundo. "Se pelo menos eu tivesse uma criança vermelha como o sangue e branca como a neve!" Depois de dizer essas palavras, começo a se sentir melhor, pois teve a impressão de que elas iriam resultar em alguma coisa. E voltou para casa.
     Um mês se passou, e a neve derreteu. Dois meses se passaram, tudo se tornara verde. Três meses se passaram, e as flores estavam brotando do chão. Quatro meses se passaram, e as árvores na mata estavam crescendo, seus galhos verdes se entrelaçando. A mata ressoava com o canto dos pássaros e flores caíam das árvores. E assim o quinto mês passou, E quando a mulher se sentava debaixo do pé de zimbro, seu coração saltava de alegria, tão perfumada a árvore estava. Ela caía de joelhos e não cabia em si de felicidade. Depois que o sexto mês se passou, o fruto ficou grande e firme e ela ficou muito sossegada. No sétimo mês ela colheu as bagas do zimbro e se deliciou com elas até ficar se sentindo muito mal e doente. Depois que o oitavo mês se passou, ela chamou o marido e lhe disse: "Se eu morrer, enterre-me debaixo do zimbro." Depois disso, sentiu-se melhor e ficou tranquila até que o nono mês passou. Então deu à luz uma criança branca como a neve e vermelha como o sangue. Quando viu o filho, ficou tão feliz que morreu de alegria.
     O marido a enterrou debaixo do pé de zimbro e chorou dia após dia. Depois de algum tempo sentiu-se melhor, mas ainda chorava de vez em quando. Finalmente parou de chorar e se casou pela segunda vez.
     Teve uma filha com a segunda mulher. A criança do primeiro casamento fora um menininho, vermelho como o sangue e branco como a neve. Sempre que olhava para sua filha, a mulher sentia amor por ela, mas sempre que olhava para o menino, ficava infeliz. Parecia-lhe que, onde quer que fosse, ele estava sempre no caminho, e ela não parava de pensar em garantir que, no fim das contas, sua filha herdasse tudo. O demônio se apossou de tal maneira da mulher que ela começou a odiar o menino, dando-lhe palmadas a torto e a direito, beliscando-o aqui e soltando um sopapo ali. O pobre menino vivia aterrorizado, e quando voltava para casa depois da escola não tinha um minuto de paz.
     Um dia a mulher entrou na despensa. Sua filhinha foi atrás e perguntou: "Mãe, me dá uma maçã?"
     "Mas é claro, minha filha", disse a mulher. Abriu uma arca de tampa grande e pesada, trancada com um cadeado de ferro, tirou uma bonita maçã e entregou-a à menina.
     "Mãe," perguntou a menininha, "o Irmão pode ganhar uma também?"
     A mulher ficou irritada, mas respondeu: "Pode. Ele pode ganhar uma quando voltar da escola."
     A mulher olhou então pela janela e viu o menino voltando para casa. Como se estivesse possuída pelo diabo, arrancou a maçã da mão da filha e disse: "Você não pode ganhar uma antes do seu irmão." Jogou a maçã na arca e trancou-a.
     O menino entrou e o demônio fez a mulher sussurrar para ele, docemente: "Meu filho, gostaria de uma maçã?" Mas lançou-lhe um olhar cheio de ódio.
     "Mãe," disse o menino, "que olhar assustador! Sim, me dê uma maçã."
     A mulher teve a sensação de que alguém a obrigava a dizer: "Venha comigo."
     Quando o menino se curvou, o diabo a instigou, e bam! Ela bateu a tampa com tanta força que a cabeça do menino caiu dentro da arca com as maçãs. Então, tomada pelo medo, pensou: "Como vou sair desta?" Foi até seu quarto e pegou um lenço branco na gaveta da cômoda. Pôs a cabeça do menino de volta sobre o pescoço e amarrou o lenço em volta, de modo que parecia não haver nada de errado. Depois o sentou numa cadeiro diante da porta e pôs uma maçã na sua mão.

Fonte: http://pensesonheviva.blogspot.com.br/2013/05/o-pe-de-zimbro.html

     Mais tarde a pequena Marlene foi à cozinha à procura da mãe e encontrou-a de pé junto ao fogo, mexendo freneticamente uma panela de água quente. "Mãe", disse a pequena Marlene, "o Irmão está sentado junto à porta e parece pálido. Está com uma maçã na mão e quando lhe pedi que a desse para mim, não respondeu. Fiquei muito assustada."
     "Volte lá", a mãe disse, "e se ele não der resposta, dê-lhe uma bofetada."
     A pequena Marlene foi até lá e disse: "Irmão, dê a maçã para mim."
     O menino não respondeu. Diante disso Marlene lhe deu uma bofetada e a cabeça dele voou pelos ares. Ela ficou tão apavorada que começou a gritar e a chorar. Correu até a mãe e disse: "Mãe, arranquei fora a cabeça do Irmão!" E chorava tanto que não conseguia parar.
     "Marlene", disse a mãe, "que coisa medonha você fez! Mas não diga nada a ninguém, pois não há nada que possamos fazer. Vamos guisá-lo e fazer um ensopado."
     A mãe pegou o menino e fez dele picadinho. Jogou os pedaços numa panela e preparou um ensopado. Marlene ficou junto ao fogo e chorou, mas chorou tanto que as lágrimas caíram na panela e nem foi preciso pôr sal na comida.
     Quando o pai chegou em casa, sentou-se à mesa e perguntou: "Onde está meu filho?"
     A mãe trouxera uma enorme travessa de ensopado, enquanto Marlene chorava, sem conseguir parar.
     "Onde está meu filho?" o pai perguntou de novo.
     "Oh", disse a mãe, "ele viajou, foi visitar o tio-avô da mãe. Está pretendendo passar um tempo por lá."
     "O que ele foi fazer lá? Saiu sem nem me dizer adeus."
     "Bem, ele queria muito ir e perguntou se poderia ficar por seis semanas. Eles cuidarão bem dele."
     "Oh, isto me deixa tão triste", disse o marido. "Não é direito. Devia ter se despedido de mim."
     Depois começou a comer e disse: "Marlene, por que você está chorando? Seu irmão voltará logo." E para a mulher: "Oh, querida esposa, que delícia este ensopado! Quero mais um pouco."
     Quanto mais o pai comia, mais queria. "Quero mais um pouco", disse. "Ninguém mais pode comê-lo. Tenho a impressão de que ele é todo para mim."
     O pai continuou a comer e foi jogando os ossos embaixo da mesa, até que a travessa ficou vazia. Nesse meio tempo, Marlene foi à sua cômoda e pegou seu melhor lenço de seda. Catou todos os ossos que estava no chão, amarrou-os em seu lenço e levou-os para fora. Chorava amargamente. Depositou os ossos no capim verde debaixo do pé de zimbro e, depois de fazer isso, sentiu-se melhor de repente e parou de chorar.
     O zimbro começou a se agitar. Seus galhos se separavam e se juntavam de novo como se estivesse batendo palmas de alegria. Uma névoa se desprendeu da árvore e no meio dela ardia uma chama, e da chama uma bela ave surgiu e se pôs a cantar gloriosamente. Elevou-se no ar e depois desapareceu. A árvore estava como era antes, mas o lenço com os ossos sumira. A pequena Marlene sentiu-se muito feliz e aliviada, porque parecia que o irmão ainda estava vivo. Voltou  contente para casa e se sentou à mesa para comer.

Fonte: http://pensesonheviva.blogspot.com.br/2013/05/o-pe-de-zimbro.html

     Enquanto isso, o pássaro voou para muito longe e se empoleirou no telhado da casa de um ourives. Começou então a cantar:
     "Minha mãe me matou, meu pai me comeu,
     Minha irmã, Marlene, meus ossos recolheu,
     Em seda os envolveu, e sob o zimbro os depositou.
     Bela ave canora agora sou!"
     O ourives estava em sua oficina, fazendo uma corrente de ouro. Ouviu a ave cantando sobre seu telhado e seu canto lhe pareceu muito bonito. Levantou-se e, ao transpor a soleira, perdeu um sapato. Mesmo assim seguiu em frente, indo até o meio da rua de meia e sapato num pé só. Estava também usando seu avental e numa das mãos tinha a corrente de ouro, na outra suas pinças. O sol brilhava na rua. Ele parou para olhar a ave e disse:
     "Ave, seu canto é tão maravilhoso. Cante de novo aquela canção para mim."
     "Não", disse a ave. "Nunca canto uma segunda vez a troco de nada. Dê-me sua corrente de ouro e eu a cantarei de novo para você."
     "Tome", disse o ourives. "Tome minha corrente de ouro. Agora cante aquela canção de novo."
     Mais que depressa, a ave desceu. Pegando a corrente de ouro com a pata direita, empoleirou-se diante do ourives e começou a cantar:
     "Minha mãe me matou, meu pai me comeu,
     Minha irmã, Marlene, meus ossos recolheu,
     Em seda os envolveu, e sob o zimbro os depositou.
     Bela ave canora agora sou!"
     Depois a ave voou até a casa de um sapateiro, empoleirou-se no telhado e cantou:
     "Minha mãe me matou, meu pai me comeu,
     Minha irmã, Marlene, meus ossos recolheu,
     Em seda os envolveu, e sob o zimbro os depositou.
     Bela ave canora agora sou!"
     Quando o sapateiro ouviu a canção, saiu porta afora em mangas de camisa e olhou para o telhado. Teve de proteger os olhos com a mão para impedir que o sol o cegasse. "Ave", disse ele, "seu canto é tão maravilhoso." Depois gritou para dentro de casa: "Mulher, venha cá fora um instante. Há uma ave ali. Está vendo? Que beleza é o seu canto!"
     O sapateiro chamou a filha e os filhos dela, seus aprendizes, os operários, a criada. Todos foram correndo para a rua para ver a ave e admirar sua formosura. Ela tinha plumas vermelhas e verdes e, à volta do pescoço, uma faixa de ouro puro, e seus olhos faiscavam como estrelas.
     "Ave", disse o sapateiro, "cante aquela canção de novo."
     "Não", disse a ave. "Nunca canto uma segunda vez a troco de nada. Você tem de me dar alguma coisa."
     "Mulher", disse o homem, "suba até o sótão. Na prateleira de cima encontrará um par de sapatos vermelhos. Traga-os para mim."
     A mulher foi e trouxe os sapatos.
     "Tome", disse o homem. "Agora cante aquela canção de novo."
     Mais que depressa, a ave desceu. Pegando os sapatos com a pata direita, foi se pôr de novo sobre o telhado e cantou:
     "Minha mãe me matou, meu pai me comeu,
     Minha irmã, Marlene, meus ossos recolheu,
     Em seda os envolveu, e sob o zimbro os depositou.
     Bela ave canora agora sou!"
     Ao terminar a canção, a ave levantou voo. Tinha a corrente na pata direita e os sapatos na esquerda, e voou uma longa distância até um moinho. O moinho rodava, plect plec, plect ploc, plect plec. Lá dentro vinte empregados do moleiro talhavam uma pedra, ric rac, ric rac, ric rac. E o moinho continuava a rodar, plect plec, plect ploc, plect plec. E assim a ave foi se empoleirar numa tília na frente do moinho e cantou:
     "Minha mãe me matou..."
     E um dos homens parou de trabalhar.
     "... meu pai me comeu..."
     E mais dois homens pararam de trabalhar e escutaram.
     "Minha irmã, Marlene..."
     Então quatro homens pararam de trabalhar.
     "... meus ossos recolheu,
     Em seda os envolveu..."
     Agora só oito homens continuavam talhando.
     "... e sob o zimbro..."
     Agora só cinco.
     "... os depositou."
     Agora só um.
     "Bela ave canora agora sou!"
     O último parou para ouvir as palavras finais. "Ave", ele disse, "seu canto é tão maravilhoso! Deixe-me ouvir a canção inteira também. Cante-a de novo."
     "Nunca canto uma segunda vez a troco de nada. Se me der a mó eu canto a canção de novo."
     "Se ela pertencesse a mim somente," ele disse, "seria sua."
     "Se a ave cantar outra vez", disseram os outros, "poderá ter a mó."
     Mais que depressa, a ave desceu, e os empregados do moleiro, todos os vinte, pegaram uma alavanca e levantaram a pedra. Hei hup, hei hup, hei hup. E a ave enfiou o pescoço no buraco da pedra de moinho, ajeitou-a como se fosse um colar, voou de volta para a árvore e cantou:
     "Minha mãe me matou, meu pai me comeu,
     Minha irmã, Marlene, meus ossos recolheu,
     Em seda os envolveu, e sob o zimbro os depositou.
     Bela ave canora agora sou!"
     Ao terminar sua canção, a ave bateu asas e voou. Na pata direita, a corrente, na esquerda os sapatos e no pescoço, a mó. Então voou para longe, muito longe, até a casa do seu pai.
     O pai, a mãe e Marlene estavam sentados à mesa, na sala, e o pai disse: "Como estou feliz! Meu coração parece tão leve."
     "Eu não", disse a mãe. "Estou atormentada como se uma grande tempestade estivesse se armando."
     Enquanto isso, Marlene só ficava ali sentada, chorando. A ave se aproximou e, quando pousou no telhado, o pai disse: "Como estou me sentindo feliz. Lá fora o sol brilha com tanto esplendor! Tenho a impressão de estar prestes a rever um velho amigo."
     "Eu não", disse a mulher. "Estou tão apavorada que meus dentes estão batendo e tenho a impressão de ter fogo correndo nas veias."
     Puxou o corpete para afrouxá-lo um pouco mais, enquanto a pequena Marlene continuava a chorar. Segurava o avental junto aos olhos e chorava tanto que ele estava completamente encharcado de lágrimas. A ave se precipitou sobre o zimbro, empoleirou-se num galho e cantou:
     "Minha mãe me matou..."
     A mãe tapou os ouvidos e fechou os olhos, porque não queria ver nem ouvir nada, mas o ronco em seus ouvidos era como a mais violenta tempestade e seus olhos ardiam e chamejavam como relâmpagos.
     "... meu pai me comeu..."
     "Oh, mãe," disse o homem, "há uma bela ave lá fora e está cantando tão gloriosamente. O sol está tão cálido, e o ar recende a canela."
     "Minha irmã, Marlene..."
     Então Marlene pôs a cabeça no colo e continuou a chorar e chorar. Mas o marido disse: "Vou lá fora. Tenho de ver essa ave de perto."
     "Oh, não vá!" disse a mulher. "Sinto como se a casa inteira estivesse se sacudindo e prestes a arder em chamas!"
     Mas o marido foi lá fora e olhou para a ave.
     "... meus ossos recolheu,
     Em seda os envolveu, e sob o zimbro os depositou.
     Bela ave canora agora sou!"
     Terminada a sua canção, a ave soltou a corrente de ouro, e ela caiu bem em volta do pescoço do homem, assentando-lhe perfeitamente. Ele entrou em casa e disse: "Venham dar uma olhada nessa linda ave ali! Ela me deu esta bonita corrente de ouro, quase tão bonita quanto ela."
     A mulher ficou tão apavorada que caiu imediatamente no chão e a touca que usava saiu da cabeça.
     E mais uma vez a ave cantou:
     "Minha mãe me matou..."
     "Oh, quisera estar mil metros debaixo da terra para não ter de ouvir isso!"
     "... meu pai me comeu..."
     Então a mulher caiu de novo, como morta.
     "Minha irmã, Marlene..."
     "Oh", disse Marlene. "Quero ir lá fora e ver se a ave me dará alguma coisa também." E saiu.
     "...meus ossos recolheu,
     Em seda os envolveu..."
     E a ave jogou-lhe os sapatos.
     "... e sob o zimbro os depositou.
     Bela ave canora agora sou!"
     Marlene sentiu-se feliz, despreocupada. Calçou os novos sapatos vermelhos e saiu dançando e saltitando pela casa.
     "Oh", disse Marlene, "eu estava tão triste quando saí, e agora estou tão alegre. Que bela ave está lá fora. Ela me deu um par de sapatos vermelhos."
     A mulher se levantou de um pulo e seu cabelo ficou arrepiado como línguas de fogo. "Sinto como se o mundo fosse acabar. Se eu for lá fora talvez me sinta melhor também."
     A mulher foi até a porta, e, bam, a ave soltou a pedra de moinho em cima da cabeça dela, que morreu esmagada. O pai e Marlene ouviram o estrondo e saíram. Fumaça, chamas e fogos se erguiam e, quando desapareceram, o Irmãozinho estava de volta, postado bem ali. Ele pegou o pai e Marlene pela mão e os três foram arrebatados pela alegria. Depois voltaram para casa, sentaram-se à mesa e jantaram.

Fonte: http://pensesonheviva.blogspot.com.br/2013/05/o-pe-de-zimbro.html

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