terça-feira, 17 de março de 2015

A Quarta Viagem de Simbad, o Marujo

Hoje eu quero compartilhar a história da Quarta Viagem de Simbad, o Marujo, extraída do livro As Mil e uma Noites: Contos Árabes (tradução Ferreira Gullar - 5. ed. - Rio de Janeiro: Revan, set. 2010. pag. 81-88).

A Quarta Viagem de Simbad, o Marujo

     A vida alegre e divertida que tive nos anos seguintes não foi suficiente para me fazer desistir das aventurosas viagens. De novo me vi cativo do prazer de comerciar e de ver coisas novas. Pus então em ordem meus negócios, comprei mercadorias para vender e trocar, e parti. Atravessei a Pérsia e alcancei um porto de mar onde embarquei. Nos fizemos ao mar e, depois de trocar em vários portos de terra firme e algumas ilhas orientais, fomos surpreendidos por um forte vento que obrigou o capitão a mandar arriar as velas e tomar todas as providências necessárias para evitar o perigo que nos ameaçava. Mas todas as precauções foram inúteis: as manobras não deram bom resultado, as velas se rasgaram de alto abaixo, e o navio, desgovernado, chocou-se contra um recife, partindo-se em dois. Muitos mercadores e marinheiros se afogaram e toda a carga se perdeu.
     Tive a felicidade, como também alguns outros mercadores, de me agarrar a uma tábua. Fomos levados, por uma corrente marítima, para uma ilha próxima. Ali encontramos água fresca para beber e frutas para matar a fome e restaurar nossas forças. Passamos a noite nas imediações da praia onde o mar nos jogara, sem ter a menor ideia do que deveríamos fazer. O abatimento em que ficamos com nossa má sorte não nos permitia pensar.
     Na manhã seguinte, quando o dia clareou, nos afastamos da praia e, caminhando para dentro da ilha, percebemos a presença de habitações. Ao nos aproximarmos, um grande número de homens negros veio em nossa direção. Eles nos cercaram e nos levaram para dentro de suas casas. Eu e cinco companheiros fomos conduzidos para um mesmo lugar. Primeiro, nos fizeram sentar e nos ofereceram uma erva estranha, querendo que a comêssemos. Meus companheiros, sem refletir e movidos apenas pela fome que sentiam, comeram avidamente o que lhes ofereciam. De minha parte, temendo alguma feitiçaria, apenas provei da erva, no que agi bem, pois percebi, pouco depois, que meus companheiros começaram a falar sem saber o que estavam dizendo.
     Em seguida, eles nos serviram arroz cozido em azeite de coco e meus companheiros, sem saber o que faziam, comeram daquele arroz fartamente. Eu comi também, mas muito pouco. Os negros tinham inicialmente nos dado aquela erva para perdermos a noção da realidade e esquecermos a lamentável situação em que nos encontrávamos; e o arroz, eles nos deram para nos engordar. Como eram antropófagos, sua intenção era nos comer quando estivéssemos mais gordos. Foi o que aconteceu com meus companheiros, que haviam perdido o bom senso. Eu que, como veem, conservei o meu, ao invés de engordar, fiquei mais magro do que era. O medo da morte que me dominava o tempo todo transformava em veneno tudo o que eu comia. Caí numa desolação que me resultou salutar, porque os negros, tendo matado e comido meus companheiros, vendo-me abatido, magro e doente, deixaram minha morte para mais tarde.
     Enquanto isso, me deixavam à vontade, sem se importar com o que eu fazia, o que me permitiu distanciar-me da aldeia e me salvar. Um velho que me observava e desconfiava de minhas intenções gritou, mandando-me voltar; mas, em vez de obedecer-lhe, apressei os passos. Na aldeia estava apenas esse velho; os outros só voltariam ao fim do dia, como de costume. Por essa razão, sabendo que ele não tinha como me alcançar quando empreendi a fuga, segui andando até anoitecer, detendo-me apenas para comer um pouco da provisão que trouxera comigo. Assim caminhei durante sete dias, evitando os lugares que supunha habitados. Alimentei-me de cocos, que me forneciam o que comer e beber.
     No oitavo dia, cheguei próximo ao mar e vi logo pessoas brancas, colhendo pimenta, que havia ali em abundância. O ato de estarem ocupadas facilitou-me delas me aproximar.
     As pessoas que colhiam pimenta vieram a meu encontro e, falando árabe, perguntaram quem era eu e de onde viera. Contente de ouvi-los falar minha língua, satisfiz com muito prazer sua curiosidade e contei-lhes que havia naufragado e viera parar naquela ilha, tendo caído nas mãos dos negros.
     - Esses negros comem gente - disseram. - Como conseguiste escapar deles?
     Contei-lhes a mesma coisa que acabei de contar-vos e eles ficaram encantados.
     Fiquei com eles até que terminassem de colher a pimenta; depois me levaram para a embarcação que os havia conduzido até ali e que nos transportou a uma outra ilha, de onde tinham vindo. Apresentaram-me a seu rei, que era muito simpático e teve a paciência de ouvir a minha história, que o deixou surpreso. Em seguida, mandou que me dessem roupas e que cuidassem bem de mim.
     A ilha onde me encontrava era bastante populosa, e a cidade onde residia o rei tinha um comércio bastante ativo. A permanência naquele lugar agradável me fez esquecer as agruras que sofrera. Minha estada na ilha era muito prazerosa, e todos me tratavam com gentileza, como se eu fosse natural dali e não um estrangeiro. Um dia o rei me chamou à parte e me disse:
     - Simbad, sabes que gosto muito de ti, do mesmo modo que todos os meus súditos. Quero te fazer um pedido e espero que me atendas.
     - Majestade, estou sempre pronto a vos atender. Um pedido vosso é uma ordem a que devo me submeter.
     - Quero que te cases com uma súdita minha para que fiques para sempre entre nós.
     Não pude negar-me à vontade do príncipe e assim foi que ele me deu por esposa uma dama de sua corte, nobre, bela, educada e rica. Após o casamento, passei a morar na casa dela, e durante algum tempo vivemos os dois em perfeita união. Apesar disso, não me sentia feliz e pensava em aproveitar a primeira oportunidade para escapar e voltar para Bagdá.
     Foi então que a mulher de um vizinho, de que me tornara grande amigo, adoeceu gravemente e morreu. Fui até sua casa para consolá-lo e o encontrei imerso na maior aflição:
     - Que Deus vos proteja e vos dê longa vida - disse-lhe eu.
     - Pobre de mim! - respondeu ele. - Como quereis que obtenha essa graça se não me resta mais que uma hora de vida?
     - Nada disso - falei-lhe. - Tirai da cabeça esse pensamento negativo. Ides viver ainda por muitos anos.
     - Isso é impossível, caro amigo - respondeu ele. - Devo ser enterrado junto com minha mulher. Este é o costume adotado por nossos ancestrais e mantido até hoje. Nada pode me salvar, todos nós estamos submetidos a essa lei.
     Enquanto me dava essa notícia terrível, os parentes, os amigos e os vizinhos foram chegando para os funerais. O cadáver da mulher foi vestido com suas roupas mais luxuosas e paramentado com todas as suas joias. Puseram-no em um caixão sem tampa e o cortejo fúnebre se pôs a caminho, com o marido à frente. Subimos por uma alta encosta que levava ao túmulo, coberto por uma laje. Esta foi removida, e o corpo baixado no fosso. Depois disso, o marido abraçou os parentes e amigos e se deixou colocar num caixão, onde puseram uma garrafa d'água e sete pãezinhos. Em seguida, ele foi baixado no fosso, do mesmo modo que sua mulher. A cerimônia terminou com a colocação da laje sobre a cova.
   
Fonte: http://www.sacred-texts.com/neu/lang1k1/tale19.htm

     - Não é necessário dizer-vos - falou Simbad - o quanto fiquei chocado com semelhante funeral. Já as demais pessoas ali presentes assistiram a tudo com naturalidade, pois esse era um procedimento tradicional em seu país. Ao ser recebido pelo rei, não me contive e disse-lhe da má impressão que me havia causado aquela cerimônia fúnebre. Ele respondeu:
     - Que queres tu? Essa é uma lei a que todos estão sujeitos, inclusive eu. Se minha esposa morrer antes de mim, também serei enterrado junto com ela.
     - E os estrangeiros - perguntei-lhe - também estão sujeitos a essa lei?
     - Sem dúvida - disse-me ele sorrindo de minha preocupação, - eles também estão sujeitos à lei, desde que casados com mulheres da ilha.
     Voltei para casa, triste com a resposta do rei. A hipótese de que minha mulher morresse antes de mim e que fosse enterrado vivo junto com ela me aterrorizava. Mas, que fazer? - indagava eu. - Só me restaria submeter-me à vontade de Deus. Não obstante, eu tremia à menor indisposição de minha mulher. E eis que um dia, para meu desespero, ela caiu doente e morreu.
     - Vejam minha situação! - exclamou Simbad. - Ser enterrado vivo não me parecia menos horrível do que ser devorado por antropófagos. Mas eu não tinha alternativa. O rei, acompanhado de toda a corte, quis comparecer ao meu enterro, bem como as pessoas mais importantes da cidade.
     O corpo de minha mulher foi colocado num caixão, juntamente com suas joias, e o enterro partiu. Como um coadjuvante dessa lamentável tragédia, eu ia imediatamente depois do caixão, os olhos banhados em lágrimas e lamentando o fim que me esperava. Antes de chegarmos à montanha, fiz uma última tentativa de escapar da morte: ajoelhei-me diante do rei e dos membros da corte, beijei-lhe os pés e roguei-lhe compaixão, alegando que era estrangeiro e que tinha em meu país outra esposa e filhos que dependiam de mim. De nada adiantou: o caixão com o corpo de minha mulher foi baixado à sepultura, segundo o ritual de sempre. Em seguida, fui posto noutro caixão, que também foi colocado na sepultura, fechada imediatamente pela laje, apesar de meus gritos e lamentos.
     Quando cheguei ao fundo da cova, pude observar, apesar da pouca luz que havia ali, que se tratava de uma enorme caverna, com uns cinquenta côvados de profundidade. Sentia um fedor horrível que vinha dos cadáveres em decomposição; ouvia os gemidos de algumas pessoas que, tendo sido enterradas vivas ali, agonizavam. Afastei-me dos cadáveres, tapando o nariz, e fui deitar-me a um canto, onde fiquei por um longo tempo, refletindo sobre minha desgraça. Arrependi-me amargamente de ter me metido naquela desastrada aventura, em vez de me contentar em viver tranquilamente do meu trabalho. No entanto, apesar de minha desolação, em lugar de desejar a morte, senti renascer em mim o amor pela vida. Assim, tateando na obscuridade, fui até o caixão, peguei lá os pães e a garrafa d'água e, assim, graças a eles, consegui manter-me vivo durante alguns dias. Preparei-me para morrer.
 
Fonte: http://www.magasinpittoresque.be/La-gravure/gravures/Galland/Gustave-Dore-04.htm

     Um dia ouvi uns ruídos que me pareceram a respiração e depois os passos de alguém. Caminhei na direção de onde vinham e tive a impressão de alguma coisa que fugia. Segui essa espécie de sombra, que se detinha, resfolegava e fugia, sempre que me aproximava. Eu a persegui durante muito tempo e fui tão longe que afinal percebi um clarão como de uma estrela. Continuei a caminhar naquela direção, às vezes perdendo-a de vista, devido aos obstáculos que tinha de transpor, até descobrir que a luz vinha de uma abertura do rochedo, de uma largura que dava para eu passar. Quando a transpus, percebi que me encontrava à beira do mar. Podeis imaginar minha alegria ao sentir-me livre da morte! Era tanta a minha felicidade que temi estar sonhando. Quando me convenci de que aquilo era realidade, compreendi que a coisa que ouvia resfolegar era um animal marinho que costumava entrar na gruta para comer os cadáveres.
     Voltei à gruta para me prover de pão e água, que comi com redobrado apetite, agora que a sorte me sorria. Depois de alimentado, retornei mais uma vez à gruta, desta vez para recolher, dos caixões, todos os diamantes, rubis, pérolas, braceletes e colares de ouro, enfim, todas as preciosas joias, enterradas ali com os mortos e que estavam agora ao alcance de minhas mãos. Valendo-me das corda e panos que encontrei na gruta, empacotei todas as joias. Ao cabo de três dias de espera, avistei um navio que passava próximo à praia onde me encontrava. Fiz sinal para ele com meu turbante e consegui que um bote viesse me buscar. Perguntaram-me que fazia eu naquele lugar e eu lhes disse que havia naufragado e conseguira salvar-me com aquelas mercadorias. Embora minha história não fosse muito convincente, me fizeram subir a bordo com meus pacotes. Para mostrar minha gratidão, ofereci ao capitão algumas das joias, mas ele não as aceitou.
     Passamos em frente a várias ilhas, entre as quais a Ilha dos Sinos, que fica a seis dias da Ilha de Kela, onde há minas de chumbo e excelente cânfora. O rei da ilha de Kela é muito poderoso, muito rico e sua autoridade se estende por toda a Ilha dos Sinos, cujos habitantes bárbaros comem carne humana. Tocamos em vários portos, onde fizemos trocas e vendas. Finalmente, cheguei a Bagdá, carregado de incalculáveis riquezas. Fiz grandes doações, tanto para o sustento de mesquitas como para ajudar os pobres. E pude dedicar-me aos meus parentes e amigos e com eles me divertir.
     Simbad concluiu assim a narrativa de sua quarta viagem que causou mais admiração aos seus ouvintes do que as anteriores. Ele de novo presenteou Hindbad com cem cequins, convidando-o e aos demais que voltassem no dia seguinte para ouvir a história da sua quinta viagem. Hindbad e os convidados pediram licença a Simbad e se retiraram. No dia seguinte, quando estavam todos reunidos, sentaram-se à mesa e comeram como das outras vezes. E Simbad começou a narrar sua quinta viagem.

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