segunda-feira, 16 de março de 2015

A Terceira Viagem de Simbad, o Marujo

Hoje eu quero compartilhar a história da Terceira Viagem de Simbad, o Marujo, extraída do livro As Mil e uma Noites: Contos Árabes (tradução Ferreira Gullar - 5. ed. - Rio de Janeiro: Revan, set. 2010. pag. 72-80).

A Terceira Viagem de Simbad, o Marujo

     A doce vida que levei então me fez esquecer os perigos que havia enfrentado nas minhas duas viagens; mas, como estava no vigor da idade, a vida sedentária me deixava entediado. Por isso, estimulado pelos novos perigos que desejava enfrentar, parti de Bagdá com preciosos produtos do país, que fiz transportar para Bolsora. Lá, embarquei de novo com outros mercadores. Fizemos uma longa viagem, desembarcando em vários portos, onde fizemos consideráveis negócios.
     Certo dia, quando nos encontrávamos em pleno mar, desabou sobre nós uma horrível tempestade, que nos desviou de nossa rota. Ela durou vários dias e nos impeliu até uma ilha onde o nosso capitão jamais desejaria aportar. Mas fomos ali ancorar.
     - Esta ilha e algumas outras vizinhas são habitadas por selvagens peludos que vão querer nos assaltar - advertiu o capitão. - Ainda que sejam anões, desgraçadamente não lhes poderemos oferecer resistência pois são muito numerosos e, se matarmos um deles, todos os outros cairão sobre nós e acabarão conosco.
     As palavras do capitão deixaram toda a tripulação preocupada, e nós logo veríamos que o que ele dissera era a pura verdade. Sem demora surgiu uma multidão de selvagens, de aspecto feroz, com o corpo coberto de pelo ruivo e uns cinco palmos de altura. Jogaram-se na água e em pouco tempo cercaram nosso navio. Falavam alguma coisa que não podíamos entender. Agarrando-se às bordas e cordames do barco, subiram ao convés com grande rapidez e agilidade. Assistimos a tudo isso sem nada fazer. Eles içaram as velas, cortaram a corda da âncora sem se dar ao trabalho de puxá-la; depois de arrastarem o navio até a praia, nos fizeram desembarcar e o conduziram a uma outra ilha de onde tinham vindo. Todos os viajantes evitam esta ilha onde nos encontramos, pela razão que veremos em seguida.
     Afastamo-nos da praia e penetramos na ilha, onde encontramos frutas, com que matamos a fome, e assim prolongamos a vida, cujo fim parecia próximo. Continuamos andando até avistarmos um edifício para onde nos dirigimos. Era um palácio bem construído e muito alto, que possuía uma porta de ébano com duas folhas, por onde entramos. Então nos encontramos num pátio com um vestíbulo onde havia, de um lado, uma pilha de ossos humanos e, de outro, espetos de assar carne. Inesperadamente, a porta se abriu ruidosamente e apareceu a figura assustadora de um gigante negro e alto como uma palmeira. Ele tinha no meio da testa um único olho, vermelho e chamejante, como carvão aceso. Os dentes da frente eram grandes e pontudos e lhe saíam da boca, que se assemelhava à de um cavalo, sendo que o lábio inferior caía-lhe sobre o peito. As orelhas eram como as de um elefante e lhe cobriam as espáduas, e as unhas eram curvas e longas como as garras dos grandes pássaros. Em face de tal monstruoso gigante, ficamos tão apavorados que perdemos a consciência e ficamos ali paralisados.
     Quando voltamos à realidade, ele estava sentado diante de nós a observar-nos atentamente. Em seguida, avançou em nossa direção, me agarrou pela nuca e me virou de todos os lados, como faz um açougueiro com uma cabeça de ovelha. Depois de me olhar bem de perto, vendo-me muito magro, só pele e osso, me largou. Foi em seguida pegando um e outro e os examinando do mesmo modo, até que chegou ao capitão, o mais gordo do grupo, cujo corpo atravessou com um dos espetos de assar carne. Logo acendeu uma fogueira, assou-o e o devorou ali mesmo; em seguida, se deitou e adormeceu, roncando tão alto quanto o ribombar de um trovão. Quanto a nós, aterrorizados, passamos toda a noite em claro. Quando amanheceu, o gigante despertou e foi embora, deixando-nos em seu palácio.

Fonte: http://www.heritage-history.com/index.php?c=read&author=steedman&book=arabian&story=third

     Livres de sua presença, só então nos atrevemos a romper o silêncio que guardamos durante toda a noite. Falamos de nossas aflições, entre lamentos e lágrimas. Embora fôssemos muitos e ele um só, não pensamos em matá-lo, ainda que essa fosse a solução que naturalmente deveria nos ocorrer. Sem chegar a nenhuma solução, caminhamos pela ilha a buscar frutas com que matar a fome e, ao anoitecer, sem ter nenhum outro lugar em que nos abrigar, voltamos para o palácio.
      O gigante também veio e de novo devorou um de nossos companheiros; depois, dormiu a roncar até o dia seguinte. Acordou e de novo saiu, deixando-nos ali. Nossa situação era tão desesperadora que alguns dos companheiros preferiram se lançar ao mar para morrer afogados a esperar por uma morte tão estranha. Mas houve um que tomou a palavra:
     - Por que nos matarmos a nós mesmos? Se estamos dispostos a morrer, mais razoável seria arriscarmos a vida tentando eliminar o monstro que nos ameaça.
     Como já havia pensando num modo de pôr isso em prática, falei aos companheiros, que se puseram de acordo comigo:
     - Meus irmãos, sabemos que há muitos troncos de madeira ao longo da praia. Com eles podemos construir jangadas que deixaremos próximo ao mar para usá-las quando chegar a hora. Enquanto isso, tentaremos eliminar o gigante; se o conseguirmos, esperaremos por algum navio que surja para nos retirar desta maldita ilha; se, pelo contrário, nosso plano fracassar, correremos para nossas jangadas e nos faremos ao mar. Não resta dúvida de que enfrentar a fúria das ondas em embarcações tão frágeis é muito arriscado, mas hão de admitir que é melhor morrer no mar do que nas entranhas daquele monstro que já devorou dois dos nossos companheiros.
     Minhas propostas foram aceitas e então construímos jangadas capazes de levar três pessoas cada uma. Voltamos ao palácio no fim do dia, e o gigante chegou depois de nós. Mais uma vez tivemos que vê-lo devorar um companheiro nosso. Mas enfim chegou a hora de nossa vingança: quando ele se deitou para dormir e começou a roncar, nove dos nossos pegaram cada qual um espeto e os levaram ao fogo até ficarem em brasa; em seguida, aproximaram-se do gigante e, de uma só vez, os cravaram no seu único olho. O gigante soltou um grito lancinante, levantou-se e estendeu as mãos tentando pegar-nos. Mal tivemos tempo de escapar enquanto ele, cego, tateava e urrava de dor.
     Saímos do palácio e corremos para o ponto da praia onde estavam nossas jangadas. Nós as puxamos para a água, esperamos o dia amanhecer e só então podíamos embarcar nelas, supondo que o gigante viesse em nossa perseguição, guiado por alguém de sua espécie. Mas, caso ele não aparecesse até o dia despontar e não mais ouvíssemos os seus urros que continuávamos a ouvir, isso indicaria que ele morrera, e então ficaríamos na ilha em lugar de tentarmos vencer o mar com nossas frágeis embarcações. No entanto, mal o dia começou a clarear, vimos o gigante se aproximar, conduzido por dois outros quase do seu tamanho e rodeado por muitos outros que o acompanhavam andando apressadamente.
     Diante disso, corremos para nossas jangadas e tratamos de nos distanciar da praia, remando com rapidez. Os gigantes, vendo que fugíamos, se muniram de enormes pedras, aproximaram-se da água - sendo que alguns entraram nela até metade do corpo - e começaram a nos alvejar tão certeiramente que, à exceção de minha jangada, todas as demais afundaram. Enquanto isso, eu e meus dois companheiros remamos mais forte ainda até ficarmos fora do alcance das pedras.

Fonte: http://www.sacred-texts.com/neu/lang1k1/tale18.htm

     Ao chegarmos em alto-mar, nossa jangada se tornou um joguete que as ondas atiravam de um lado para o outro. Passamos aquela noite e o outro dia seguinte sem rumo e sem saber o que ia ser de nós; mas, no dia seguinte, tivemos a felicidade de sermos arrastados para uma ilha, onde encontramos excelentes frutas e assim pudemos restaurar nossas forças.
     À noite, dormimos na praia, mas fomos despertados pelo guizo de uma serpente enorme, que enlaçou um dos meu companheiros e o engoliu, apesar dos esforços que ele fez para se defender. Eu e o outro companheiro que restava tratamos de escapar; não obstante a distância, ouvimos o barulho que a serpente fez cuspindo fora os ossos de sua vítima; osso que, depois, horrorizados, encontramos no chão, ao voltarmos ali.
     Mais tarde descobrimos uma árvore muito copada e alta que nos pareceu um lugar mais seguro para passarmos a noite. Depois de nos alimentarmos de frutas, como no dia anterior, esperamos anoitecer para subirmos na árvore. Ouvi quando a serpente, silvando, aproximou-se e deu o bote no meu companheiro, que estava num galho mais baixo, capturando-o e o engolindo em seguida. Depois disso, ela se foi.

Fonte: http://www.angelfire.com/nb/classillus0/arabian/sinbad.html

     Só desci da árvore quando amanheceu. Estava apavorado, pois não esperava ter sorte diferente de meus dois infelizes companheiros. Esse pensamento me fazia estremecer de medo. Cheguei a caminhar em direção ao mar, disposto a me deixar afogar nele; mas, como amo a vida acima de tudo, contive-me e entreguei minha sorte nas mãos de Deus.
     Mas nem por isso deixei de tomar providências para me proteger: recolhi uma quantidade de galhos finos, cobertos de folhas ou de espinhos, amarrei-os em feixes e fui com eles compondo uma espécie de cercado, no meio do qual me instalei, ocultando-me sob uma coberta de ramos secos. À noite, como eu previa, a serpente apareceu, silvando e agitando seu guizo, no propósito de me devorar como fizera com meus dois companheiros. Moveu-se em torno de minha fortaleza e depois se deteve ali à espreita, como um gato à espera de que o rato saia da toca. Como não saí, ela foi embora ao amanhecer. Só então deixei meu esconderijo.
     Deus comoveu-se com meu desespero e decidiu me ajudar, fazendo aproximar-se da ilha um navio. Mal o avistei comecei a gritar com toda a força de meus pulmões e a agitar o meu turbante. Deus resultado, tanto que enviaram um bote para me buscar. Quando subi a bordo, os tripulantes e mercadores quiseram saber como tinha ido parar naquela ilha deserta. Ao ouvirem contar tudo o que se passara comigo, os mais velhos afirmaram já ter ouvido falar que naquela ilha moram gigantes antropófagos que adoram comer pessoas vivas ou assadas; quanto às serpentes, também sabiam delas e de seu costume de se esconderem durante o dia e saírem das tocas à noite atrás de comida.
     A viagem transcorreu tranquila, tendo o navio tocado em diversas ilhas antes de chegar a Salahat, onde existe uma árvore chamada sândalo, cuja madeira era muito usada na medicina. Entramos no porto e ancoramos. Os mercadores começaram a desembarcar suas mercadorias para vendê-las ou trocá-las. Foi então que o capitão me chamou e me disse:
     - Irmão, tenho no depósito mercadorias de propriedade de um mercador que viajou durante muito tempo em meu navio. Como esse mercador morreu, quero vendê-las e entregar o dinheiro apurado a seus herdeiros, assim que os encontrar.
     Os fardos de mercadorias a que se referira o capitão já estavam no tombadilho. Ele então disse a Simbad que, se as vendesse, receberia uma porcentagem sobre o valor; mas, quando o escrivão de bordo perguntou ao capitão em nome de quem devia anotar as mercadorias que me seriam entregues para vender, ele respondeu:
     - No nome de Simbad, o marujo.
     Fiquei emocionado ao ouvi-lo dizer meu nome e, observando-o melhor, reconheci nele o capitão que, na minha segunda viagem, me havia deixado na ilha em que eu adormecera à margem de um riacho. Não o havia reconhecido de imediato porque sua figura mudara muito desde a última vez que o vira. Quanto a ele, que me julgava morto, não é de surpreender que não me tenha reconhecido.
     - Capitão - disse-lhe eu, - quer dizer que o mercador a quem pertenciam estas mercadorias se chamava Simbad?
     - Sim - respondeu o capitão, - assim se chamava ele, e viera de Bagdá, tendo embarcado em meu navio em Balsora. No dia em que aportamos numa ilha para conseguir água e descansarmos da viagem, terminei partindo dali sem perceber que ele não havia retornado ao barco como os demais. Só fui me dar conta disso quatro horas depois. Já estávamos tão longe e navegando de vento em popa, que não nos foi possível voltar para recolhê-lo.
     - Acreditais então que ele morreu? - perguntei-lhe.
     - Certamente.
     - Pois então, abri bem os olhos e vede aqui diante de vós o Simbad que deixastes naquela ilha deserta.
     Ao ouvir essas palavras, o capitão me olhou fixamente.
     O capitão após me fitar atentamente, reconheceu-me afinal.
     - Deus seja louvado! - exclamou ele, um tanto embaraçado. - Estou feliz por ver que a sorte corrigiu o erro que cometi! Devolvo-vos as mercadorias e o dinheiro que obtive com as que consegui vender nos diversos portos onde atraquei.
     Demonstrei ao capitão meu reconhecimento e tomei posse do que me pertencia.
     Da ilha de Salahat, fomos a uma outra onde me provi de cravos-da-índia, canela e outras especiarias. Ao nos afastarmos dela, vimos uma tartaruga de vinte côvados de comprimento e outro tanto de largura. Encontramos também um peixe que dava leite como uma vaca e cuja pele resistente era usada para fazer escudos. Vi um outro que tinha a forma e a cor de um camelo. Enfim, depois de um longo percurso, chegamos a Balsora, e de lá fomos para Bagdá, levando conosco tantas riquezas, que era impossível calcular. Dei uma boa parte delas aos pobres e acrescentei mais terras às que já possuía.
     Simbad concluiu assim a narrativa de sua terceira viagem. Mandou dar em seguida cem cequins a Hindbad, convidando-o para a ceia do dia seguinte e a narração da quarta viagem. Hindbad e os demais convidados se retiraram e voltaram no dia seguinte. Simbad, ao terminar o jantar daquele dia, continuou a contar suas aventuras.

2 comentários:

  1. Tem como vc resumir todas as histórias por favor?

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    1. é legal conhecer na integra, mas se você quiser me fala certinho que faço um resumo pra vc =)

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