segunda-feira, 21 de novembro de 2016

A Filha de um Rei e o Filho de Outro

Hoje eu quero compartilhar a história da filha de um rei e do filho de outro, extraída do livro Branca de Neve e outras histórias (Irmãos Grimm, tradução e comentários Fausto Wolff - Rio de Janeiro: Revan, 2006. pag. 53-61).

A Filha de um Rei e o Filho de Outro
Jacob e Wilhelm Grimm

     Era uma vez um rei que tinha um filho que - segundo um vidente - aos 16 anos seria morto por um cervo. O jovem príncipe acabara de completar essa idade quando decidiu sair para caçar com alguns caçadores reais. Durante a caçada, o príncipe distraiu-se e acabou afastando-se da comitiva. Numa clareira deparou-se com um enorme cervo. O animal começou a fugir e o príncipe o perseguiu sem sucesso por um longo tempo. Finalmente, o cervo acabou correndo para dentro de uma pequena depressão na terra e imediatamente transformou-se num homem alto e magro que lhe disse:
     - Muito bem, finalmente o peguei - disse o homem, empurrando o príncipe até um barco. - Inúmeras vezes o segui silenciosamente, mas jamais consegui surpreendê-lo sozinho.
     Os dois entraram no barco e o homem remou para o reino onde era o monarca. Ao chegarem ao castelo, encontraram a mesa posta e jantaram. Quando acabaram a sobremesa, o rei disse ao príncipe:
     - Tenho três filhas e quero que você vigie a mais velha hoje à noite. Você ficará sentado à porta do quarto dela das nove da noite até de manhã. Cada vez que o relógio soar eu vou chamá-lo gentilmente. Se você não me responder imediatamente, morrerá pela manhã. Se responder, eu lhe darei a mão da minha filha em casamento.
     O príncipe foi levado para a porta do quarto da filha mais velha do rei, a tempo de vê-la dizer para uma imagem de pedra:
     - Quando meu pai chegar às nove horas e a cada hora depois disso, deixe o príncipe dormindo e responda por ele.
     A estátua de pedra assentiu com a cabeça rapidamente e depois, cada vez mais devagar, até parar totalmente.
     Na manhã seguinte o rei disse ao príncipe que ele havia executado à perfeição o seu dever mas que ele, o rei, não podia dar-lhe a filha mais velha como esposa. Para merecer a mão da primeira, ele teria de vigiar a filha do meio.
     - Virei à cada hora. Se não receber resposta lhe darei a morte. Se receber, lhe darei minha filha mais velha - disse o rei.
     O príncipe foi levado para a frente do quarto da filha do meio a tempo de ouvi-la dizer a uma estátua de pedra ainda maior do que a anterior:
     - Deixe o príncipe dormir e todas as vezes que meu pai chamar, responda no lugar dele.
     A estátua assentiu com a cabeça rapidamente e depois cada vez mais devagar até ficar imóvel. O príncipe foi até o umbral da porta e adormeceu com a cabeça deitada sobre o braço direito.Na manhã seguinte o rei lhe deu os parabéns e em seguida lhe disse:
     - Não posso abrir mão da minha filha do meio. Tenha paciência e vigie a mais moça hoje à noite. Só depois disso considerarei a possibilidade de você casar com minha filha do meio.
     O príncipe foi conduzido até o quarto da princesa mais nova e chegou a tempo de vê-la dizer para uma estátua gigantesca:
     - Se meu pai chamar, você deve responder pelo príncipe.
     A estátua assentiu com a cabeça durante meia hora e depois tratou de imobilizar-se. Em seguida o príncipe deitou-se no umbral da porta e logo adormeceu.
     Na manhã seguinte, o rei lhe disse que ele certamente fora um bom vigia, mas que não poderia dar-lhe a filha em casamento enquanto ele não derrubasse uma enorme floresta até o anoitecer, ocasião em que pensaria no assunto. Em seguida deu ao príncipe um machado de vidro, um calço de vidro e um malho de vidro. O príncipe dirigiu-se à floresta e começou a trabalhar, mas ao primeiro golpe o machado quebrou em vários pedaços. O mesmo aconteceu com o malho e a cunha quando tentou utilizá-los. Certo de que seria condenado à morte pelo rei e sem saber o que fazer, o jovem príncipe sentou-se sobre a raiz de uma árvore e começou a chorar.
     Ao meio-dia o rei disse às suas filhas:
     - Uma de vocês deve levar alguma coisa para o rapaz comer.
     - Não. não! - disseram a um só tempo as duas mais velhas. Deixe que a última que ele vigiou lhe leve o almoço.
     A princesa caçula concordou em levar a comida e quando chegou à floresta perguntou ao jovem príncipe como andava o trabalho.
     - Vai tudo muito mal, muito mal!
     - Você precisa comer alguma coisa - disse a princesa.
     Mas ele recusou dizendo:
     - Não. Como vou morrer decidi não mais comer enquanto estiver vivo.
     Aos poucos a princesa conseguiu persuadi-lo e ele acabou comendo a refeição. Quando terminou, a princesa convidou-o a jogar bola com ela e logo ele adormeceu de tão cansado. Ela, então, pegou seu lenço e fez um nó numa das extremidades. Depois disso bateu três vezes com o lenço no chão e disse:
     - Homens do fundo da terra, apareçam.
     Uma porção de anões apareceram e indagaram à princesa o que ela queria.
     - Vocês tem três horas para derrubar toda esta floresta e a lenha deve ser toda empilhada.
     Os anõezinhos puseram-se a trabalhar e três horas depois chamaram a princesa para ver o trabalho. A princesa agradeceu, bateu três vezes com o lenço no solo e gritou:
     - Homens do fundo da terra, voltem para casa!
     Os anões desapareceram como por encanto. Depois disso, a princesa foi acordar o príncipe que ficou maravilhado ao ver que a floresta sumira. Ela pediu-lhe que não retornasse ao palácio antes das seis da tarde. Na hora combinada ele voltou e o rei perguntou-lhe se havia realizado a tarefa; e ele:
     - Sim, fiz o trabalho. Onde havia uma imensa floresta agora há uma imensa clareira.

Fonte: http://viajeaqui.abril.com.br/materias/florestas-encantadas-pelo-mundo#2

     Mais tarde, sentados à mesa de jantar, o rei disse ao príncipe que não poderia dar-lhe nenhuma das suas filhas como esposa enquanto ele não cumprisse outro dever. Teria que limpar um fosso enorme e profundo e enchê-lo de água tão clara que parecesse um espelho. Completou dizendo:
     - E o lago terá de ter todos os tipos de peixes do mundo.
     Na manhã seguinte, o rei deu ao príncipe uma pá de vidro e lhe informou que deveria terminar o trabalho até às seis da tarde se não quisesse morrer. O príncipe foi até o fosso e assim que a pá entrou em contato com a terra quebrou em duas partes, como ocorrera com o machado ao entrar em contato com a madeira no dia anterior.
     Novamente, o príncipe não soube o que fazer e, desesperado, esperou até o meio-dia, quando a princesa mais jovem trouxe-lhe o almoço e lhe perguntou como estava se saindo com o trabalho:
     - Ai de mim! - disse ele, escondendo a face com as mãos. - Estou com o mesmo azar de ontem.
     A princesa tratou de confortá-lo, dizendo que ele se sentiria melhor depois que houvesse se alimentado e dormido um pouco. Mais uma vez, ele disse que, como iria morrer, negava-se a comer. A princesa acabou convencendo-o a comer. Ele limpou o prato e, logo depois, pegou no sono. Enquanto o príncipe roncava, ela pegou seu lenço, bateu com ele contra o solo três vezes e gritou:
     - Homens do fundo da terra, apareçam!
     Imediatamente surgiram vários anõezinhos e perguntaram-lhe o que queria. Ela respondeu:
     - Em três horas vocês terão de ter acabado com este fosso, e enchido o imenso buraco de água cristalina contendo todas as espécies de peixe do mundo.
     Os homens da terra usaram todas as suas forças e trabalharam com tanto afinco que, duas horas depois, haviam terminado a tarefa. Comunicaram o feito à princesa, que batendo com o nó do lenço três vezes no chão, gritou:
     - Homens do fundo da terra, voltem para casa!
     Os anões desapareceram e a filha mais moça do rei acordou o príncipe. Este, ao ver o lago, alegrou-se muito e a princesa, antes de retornar ao palácio, disse-lhe para ele não aparecer lá antes das seis da tarde.
     No castelo, durante o jantar, depois de cumprimentar o príncipe, o rei disse-lhe que tinha um último trabalho para ele antes de dar-lhe uma das filhas em casamento.
     - E que trabalho será este? - perguntou o príncipe.
     - Perto daqui há uma grande colina - replicou o rei - sobre a qual repousam inúmeros rochedos. Sua função será fazer desaparecer os rochedos e em seu lugar construir um palácio, que além de belo terá de ser uma verdadeira fortaleza com todos os acessórios necessários. Naturalmente, isso deve ser feito até às seis da tarde, caso contrário mandarei separar a cabeça do seu corpo.
     No dia seguinte, após receber do rei uma picareta de vidro e uma furadeira do mesmo material, o príncipe dirigiu-se à colina dos rochedos. Tanto a picareta quanto a furadeira quebraram em pedaços ao primeiro contato com os rochedos. O príncipe sentou-se no chão e esperou pela princesa que lhe traria alimento e, talvez, como nas vezes anteriores, o ajudasse a se salvar. E foi como tudo ocorreu. A princesa lhe deu a comida, ele negou-se a comê-la, ela o persuadiu, ele comeu e logo adormeceu. A princesa bateu três vezes na terra com o lenço enquanto gritava:
     - Apareçam homens do fundo da terra.
     Os anões apareceram, perguntaram o que ela queria, ela lhes deu as ordens e eles acabaram de construir o castelo três horas depois. A princesa bateu com o lenço no solo três vezes e gritou:
    - Retornem para casa, homens do fundo da terra.
     Os anões desapareceram. E ela, então, foi acordar o príncipe, que ficou felicíssimo ao ver o enorme castelo. Os dois namoraram até as seis da tarde e depois foram ver o rei, pai da moça, que perguntou imediatamente:
     - O castelo também está pronto?
     - Sim - disse o príncipe que, mais tarde, à mesa de jantar, teve de ouvir o rei dizer:
     - O problema é o seguinte. Não posso lhe dar a mão da minha filha mais jovem enquanto você não tiver pedido a mão das mais velhas.

Fonte: http://pt.hallpic.com/papel-de-parede/365845-castelo_colina_natureza_paisagem/

     As palavras do rei entristeceram o príncipe e a princesa, que não sabiam mais o que fazer. À noite ele foi ao quarto dela e os dois fugiram. Na fuga, a princesa olhou para trás e viu o seu pai, que os perseguia.
     - Ai de nós! - disse ela. - O que devemos fazer? Meu pai logo vai nos alcançar. Vou transformá-lo num espinheiro e a mim numa rosa, que você protegerá.
     Quando o rei chegou ao local encontrou apenas um espinheiro e, grudada a ele, uma rosa. O rei tentou arrancar a rosa mas os espinhos se eriçaram e acabaram picando o seu dedo. Isso fez com que o rei voltasse ao seu castelo. Lá, sua mulher, a rainha, perguntou-lhe por que não voltara com os fugitivos. Ele respondeu-lhe que os seguira, mas que, a certa altura, ele os perdera de vista. Encontrara apenas um espinheiro com uma rosa.
     - Se você tivesse arrancado a rosa, o espinheiro viria atrás dela como um cãozinho, e morreria no mesmo instante.
     Diante das palavras da mulher, o rei saiu jurando que traria a rosa consigo. Nesse meio tempo, porém, o príncipe e a princesa já haviam seguido adiante e o rei foi obrigado a segui-los. A princesa olhou para trás e viu seu pai ao longe. Disse:
     - Meu pai vem aí. O que podemos fazer? Ah, já sei. Vou transformá-lo numa igreja, e a mim, num pároco no alto de um púlpito pronto para fazer uma pregação.
     Quando chegou onde haviam estado sua filha e o príncipe, o rei viu apenas uma igreja e o pároco pregando no alto do púlpito. Parou para ouvir o sermão e em seguida retornou ao seu castelo.
     - Você deveria ter trazido o pároco - disse-lhe a mulher. - A igreja o teria seguido. Já vi que é inútil mandá-lo fazer qualquer coisa. Eu mesma vou ter de capturá-los.
     A rainha já estava perto da igreja quando a princesa disfarçada de pároco olhou para trás e a viu. A princesa exclamou:
     - Não poderíamos ter pior sorte, pois minha mãe vem aí. Vou transformá-lo num lago enquanto me transformo num peixe.
     Quando a rainha chegou ao local onde estivera a igreja, encontrou um lago e um peixe pulando alegremente no meio dele. A rainha tentou pegar o peixe com as mãos, mas ele acabava sempre escapando. Irada, bebeu todo o lago. Este, porém, imediatamente se enchia de água novamente. Depois de bebê-lo algumas vezes, a soberana viu que não teria sucesso e retornou para casa.
     Livres da rainha, os jovens continuaram a jornada e, uma hora depois, viram, ao longe, o castelo do príncipe e, próximo a ele, uma pequena aldeia. Quando chegaram mais perto, o príncipe disse à sua amada:
     - Espere aqui, minha querida, enquanto vou até o castelo trazer carruagem e vassalos para servi-la.
     A volta do príncipe foi recebida com grande alegria e ele disse que sua noiva o esperava na vila com uma carruagem. Os vassalos selaram os cavalos e atrelaram-nos à carruagem, para depois tomarem seus lugares. O príncipe, antes de entrar na carruagem, deu um beijo na mãe e nesse momento esqueceu-se de tudo o que ocorrera com ele e de tudo o que precisava fazer. A rainha, sua mãe, então mandou desatrelar os cavalos e guardar a carruagem. Enquanto isso a princesa aguardava na vila. Esperou por dias, e como o príncipe não dava sinais de retornar, ela se empregou com um moleiro cujo moinho pertencia ao castelo. Todos os dias a princesa lavava roupa no riacho perto de onde vivia o príncipe.
     Certo dia a rainha passou pelo riacho onde aprincesa lavava roupa e a deixava secar ao sol. Ao vê-la disse para si mesma:
     - Que bela moça! Gostei dela.
     Infelizmente, tão rápido como surgiu, o pensamento desapareceu da cabeça da rainha, que não pensou mais no assunto. Por isso mesmo a princesa continuou trabalhando para o moleiro até o dia em que a rainha descobriu num reino distante uma noiva que considerava apropriada para o seu filho. Quando a noiva chegou, um grande número de pessoas foi convidado para recepcioná-la, e a princesa pediu ao moleiro, seu patrão, que a deixasse sair um pouco antes naquele dia para assistir aos festejos. No dia do casamento, a princesa esquecida abriu uma das três nozes que sua mãe lhe dera de presente, e dela retirou um vestido maravilhoso. Depois de vesti-lo, foi até a igreja, onde ocupou um lugar bem perto do altar. Depois de alguns minutos, o príncipe e sua noiva postaram-se na frente do altar. O sacerdote já estava para abençoar o casal quando olhando para o lado, a noiva viu a outra princesa com seu deslumbrante vestido. Imediatamente, mandou suspender a cerimônia, declarando que só se casaria quando tivesse um vestido tão bonito quanto o da princesa atrás dela. Todos os convidados retornaram para suas casasse perguntaram à estranha moça se ela não emprestaria seu vestido à noiva.
     - Não - disse ela. - E nem o vendo por dinheiro nenhum deste mundo. Só há um modo de eu me separar do meu vestido.
     - Qual? - perguntaram os vassalos do rei.
     - Quero que me deixem dormir por uma noite do lado de fora do quarto do príncipe.
     Tanto o rei quanto a rainha, pais do príncipe, concordaram. Os vassalos, entretanto, colocaram no copo de água do jovem noivo uma poção para fazê-lo dormir pesadamente. Ele bebeu a água e a pobre princesa passou a noite toda do lado de fora da porta, tentando fazê-lo lembrar-se dela. Dormindo profundamente, porém, ele não ouvira palavra alguma. Ela passou a noite inteira dizendo-lhe como havia derrubado a floresta para ele, como fizera um lago com peixes para ele, como construíra um castelo, como o transformara num espinheiro, numa igreja e finalmente num lago e apesar disso tudo ele a havia esquecido.
     O príncipe não ouvira nada e,na manhã seguinte, sua noiva oficial colocou o vestido da princesa esquecida. Noivo e noiva voltaram para a igreja a fim de celebrar o matrimônio. Antes de entrarem, porém, a princesa esquecida já havia se colocado perto do altar com um vestido ainda mais belo do que o anterior. A noiva suspendeu a cerimônia outra vez. Só se casaria quando tivesse um vestido tão bonito quanto o da estranha convidada. Mais uma vez os vassalos pediram o vestido emprestado à princesa e mais uma vez ela declarou que só se apartaria dele se pudesse dormir outra noite do lado de fora do quarto do príncipe. Dessa vez, porém, o príncipe não bebeu da água com a poção para dormir, ouviu todas as queixas e muito se afligiu. Na manhã seguinte, ele foi até a princesa e implorou que o perdoasse por seu esquecimento e sua ingratidão. Foi então que a princesa esquecida, a verdadeira princesa, quebrou sua terceira noz e o vestido que saiu de dentro dela era tão esplendoroso que todas as moças e rapazes jogavam rosas em seu caminho. Foi assim que o príncipe e a princesa casaram e foram felizes para sempre, ao passo que a noiva invejosa e a velha rainha foram obrigadas a fugir.

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