sábado, 21 de março de 2015

O Gato de Botas

Hoje eu quero compartilhar a história do Gato de Botas, de Charles Perrault, extraída do livro Contos de Fadas (edição, introdução e notas Maria Tatar; tradução Maria Luiza X. de A. Borges - 1. ed. com. e il. - Rio de Janeiro: Zahar, 2013. pag. 246-258).

O Gato de Botas ou O Mestre Gato
Charles Perrault

     Toda a fortuna que um moleiro deixou para os três filhos foi seu moinho, seu asno e seu gato. A partilha foi feita imediatamente e não foi preciso chamar o tabelião nem o procurador, que logo teriam devorado o parco patrimônio. O filho mais velho ficou com o moinho, o segundo com o asno, e para o caçula sobrou o gato.
     Este último não se conformava de ter um quinhão tão mesquinho. "Meus irmãos", dizia, "poderão ganhar a vida honestamente trabalhando juntos. Quanto a mim, quando tiver comigo o meu gato e feito luvas com a sua pele, só me restará morrer de fome."
     O gato, que escutou essa fala sem se dar por achado, disse-lhe com ar grave e ponderado: "Não se aflija, meu amo, basta que me dê um saco e mande fazer para mim um par de botas para que eu possa andar pelo mato, e verá que o pedaço que lhe coube na herança não é tão mal assim."
     Embora não se fiasse muito naquela conversa, o amo do gato já o vira usar tantas artimanhas para pegar ratos e camundongos (pendurando-se de cabeça para baixo pelos pés, os escondendo-se na farinha para se fazer de morto) que teve um fio de esperança de ser socorrido por ele na sua desgraça.
     Quando recebe o que pedira, o gato calçou garbosamente as botas. Depois meteu no saco farelo e alfaces e o pendurou às costas, segurando os cordões com as duas patas da frente. Partiu então para um bosque onde havia muios coelhos. Lá chegando, esticou-se como se estivesse morto e esperou que algum coelho jovem, ainda inocente das perfídias deste mundo, viesse se enfiar no seu saco para comer o farelo e as alfaces.
     Mal se deitara, foi premiado com o sucesso: um jovem coelho entrou no seu saco, e Mestre Gato, puxando imediatamente os cordões, o agarrou e matou sem misericórdia. Todo orgulhoso de sua proeza, foi à casa do rei e pediu para lhe falar. Fizeram-no subir aos aposentos de Sua Majestade e, após entrar e fazer uma profunda reverência, o gato disse:
     "Trago comigo um coelho da floresta com que o senhor marquês de Carabá (foi o nome que, de veneta, deu ao amo) me encarregou de vos presentear da parte dele."
     "Diga ao seu amo", respondeu o rei, "que lhe agradeço e que ele me dá um grande prazer."
     Mais uma vez, o gato foi se esconder num campo de trigo, mantendo sempre seu caso aberto. E quando duas perdizes se enfiaram nele, puxou os cordões e capturou-as. Em seguida foi dá-las de presente ao rei, como fizera com o coelho da floresta. Mais uma vez o rei recebeu com prazer as duas perdizes e mandou que dessem uma gratificação ao bichano.
     Assim, por dois ou três meses, o gato continuou a levar para o rei, de tempos em tempos, uma caça em nome de seu amo. Um dia, tendo ficado sabendo que o rei sairia a passeio pela margem do rio com a filha, a mais bela princesa do mundo, ele disse a seu amo: "Se quiser seguir meu conselho, sua fortuna está feita; basta que vá se banhar no rio no lugar que lhe mostrarei. E deixe o resto por minha conta."
     O marquês de Carabá fez o que o gato lhe aconselhava, sem saber para que aquilo poderia servir. Enquanto ele se banhava, o rei passou por ali, e o gato se pôs a gritar a plenos pulmões: "Socorro! Socorro! Meu senhor, o marquês de Carabá, está se afogando!"

Fonte: http://pasosperdidos.eresmas.net/Gatoliter/charles_perrault.htm

     A esse grito, o rei enfiou a cabeça pela janela da carruagem e, ao reconhecer o gato que tantas vezes lhe levara caça, ordenou a seus guardas que fossem a toda pressa socorrer o senhor marquês de Carabá.
     Enquanto os guardas tiravam o pobre marquês do rio, o gato se aproximou da carruagem e disse ao rei que,, enquanto seu amo se banhava, ladrões tinham levado suas roupas, por mais que ele tivesse gritado "Pega ladrão!" com todas as suas forças. (Na verdade, o maroto as escondera debaixo de uma pedra grande.)
     Imediatamente o rei ordenou aos servidores encarregados de seu guarda-roupa que fossem buscar um de seus mais belos trajes para o senhor marquês de Carabá. Depois o rei fez a ele mil cumprimentos, e como as belas roupas que acabara de ganhar realçavam seu semblante agradável (pois era bonito e bem-constituído), a filha do rei o achou muito do seu agrado. Mal o marquês de Carabá lhe dirigira dois ou três olhares muito respeitosos, e um pouco ternos, ela ficou perdida de amor.
     O rei quis que o marquês entrasse na carruagem e fosse com eles passear. O gato, encantado de ver que seu plano começava a dar certo, seguiu na frente e, encontrando alguns camponeses que ceifavam num prado, disse-lhes: "Boa gente que está ceifando, se não disserem ao rei que o prado que estão ceifando pertence ao senhor marquês de Carabá, serão todos picados miudinho como recheio de linguiça."
     E de fato o rei perguntou aos camponeses a quem pertencia o prado que ceifavam. "Pertence ao senhor marquês de Carabá", responderam todos em coro, porque a ameaça do gato os amedrontara.
     "Tem aí uma bela herança", disse o rei ao marquês de Carabá.
     "Como vedes, Majestade", respondeu o marquês, "é um prado que não deixa de produzir com abundância todos os anos."
     Mestre Gato, que seguia sempre à frente, encontrou um grupo de homens que colhiam e lhes disse: "Boa gente que está colhendo, se não disserem ao rei que todo este trigo pertence a senhor marquês de Carabá, serão todos picados miudinho como recheio de linguiça."
     O rei, que passou instantes depois, quis saber a quem pertencia todo o trigo que via. "Pertence ao marquês de Carabá", responderam os colheiteiros, e mais uma vez o rei se congratulou com o marquês.
     O gato, que ia adiante da carruagem, dizia sempre a mesma coisa a todos que encontrava. E o rei estava pasmo com as riquezas do senhor marquês de Carabá. Finalmente Mestre Gato chegou a um belo castelo que pertencia a um ogro, o mais rico que jamais se viu, pois todas as terras por onde o rei passara eram parte de seu domínio. O gato, que tivera o cuidado de se informar sobre quem era esse ogro e do que era capaz, pediu uma audiência, alegando que não quisera passar tão perto de um castelo sem ter a honra de prestar suas homenagens ao castelão.
     O ogro o recebeu com a cortesia de que um ogro é capaz e o convidou a sentar.
     "Garantiram-me", disse o gato, "que você tem o dom de se transformar em todo tipo de animal, que é capaz, por exemplo, de se transformar num leão ou num elefante."
     "É verdade", respondeu o ogro bruscamente. "Para lhe dar uma mostra, vou me transformar num leão."
     O gato ficou tão apavorado de ver um leão diante de si que num instante estava nas calhas do telhado - não sem dificuldade e perigo, por causa das botas, que não eram grande coisa para se caminhar sobre telhas.
     Algum tempo depois, tendo visto que o ogro voltara à sua primeira forma, o gato desceu e confessou que ficara aterrorizado.
     "Garantiram-me ainda," disse o gato, "mas não pude acreditar, que você também tem o poder de tomar a forma dos animais mais pequeninos, que pode se transformar por exemplo num rato, num camundongo. Confesso que isso me parece totalmente impossível."
     "Impossível?" replicou o ogro. "Veja só." E no mesmo instante se transformou num camundongo que se pôs a correr pelo assoalho. Quando viu isso, o gato se jogou em cima dele e o comeu.
     Nesse meio tempo o rei, ao passar, viu o belo castelo do ogro e quis visitá-lo. Ao ouvir o ruído da carruagem passando sobre a ponte levadiça, o gato correu para a frente do castelo e disse ao rei:
     "Seja bem-vinda, Vossa Majestade, ao castelo do senhor marquês de Carabá."
     "Mas como, senhor marquês!" exclamou o rei. "Também este castelo lhe pertence? Não pode haver nada de mais bonito que este pátio e estas construções que o cercam. Vejamos o interior, por favor."
     O marquês deu a mão à jovem princesa e os dois seguiram o rei escada acima. Quando entraram no grande salão, encontraram servida uma magnífica refeição. O ogro a mandara preparar para uns amigos que deveriam visitá-lo naquele mesmo dia, mas eles, sabendo que o rei estava lá, não haviam ousado entrar.
     O rei, encantado com as boas qualidade do senhor marquês de Carabá - qualidade pelas quais sua filha estava perdidamente apaixonada - e vendo as riquezas que ele possuía, disse-lhe, depois de ter tomado cinco ou seis taças:
     "Depende somente de ti, marquês, vir a ser meu genro."
     O marquês, fazendo profundas reverências, aceitou a honra que lhe fazia o rei; e naquele dia mesmo casou-se com a princesa.
     O gato tornou-se um grande senhor e passou a só correr atrás de camundongos para se divertir.

Fonte: http://encantamentosdaliteratura.blogspot.com.br/2009/04/o-gato-de-botas-harry-clarke.html

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