quarta-feira, 18 de março de 2015

A Sexta Viagem de Simbad, o Marujo

Hoje eu quero compartilhar a história da Sexta Viagem de Simbad, o Marujo, extraída do livro As Mil e uma Noites: Contos Árabes (tradução Ferreira Gullar - 5. ed. - Rio de Janeiro: Revan, set. 2010. pag. 95-101).

A Sexta Viagem de Simbad, o Marujo

     - Senhores - começou Simbad, - ireis agora saber como, depois de sofrer cinco naufrágios e enfrentar tantos perigos, ainda tive ânimo para mais uma vez tentar a fortuna e buscar novas aflições. Eu mesmo me surpreendi quando refleti sobre isso e concluí ser uma sina a que estava sujeito. Seja o que for, o certo é que, ao cabo de um ano, estava eu me preparando para a sexta viagem, apesar dos pedidos de meus parentes e amigos, que tudo fizeram para me dissuadir.
     Em lugar de tomar o caminho do Golfo Pérsico, preferi atravessar várias províncias da Pérsia e da Índia, até um porto de mar onde embarquei num belo navio, cujo capitão estava disposto a empreender uma longa viagem. Foi de fato muito longa, mas, ao mesmo tempo, desastrosa, a ponto de o capitão e o piloto perderem a rota e não saberem mais onde estávamos. Eles a reencontraram afinal, mas isso não foi motivo de júbilo, pois eu e os demais passageiros ficamos perplexos ao vermos o capitão abandonar seu posto, aos gritos. Depois, jogou o turbante no chão, puxou pela própria barba como se quisesse arrancá-la e esmurrou a própria cabeça, como se tivesse enlouquecido. Perguntamo-lhe a causa daquilo tudo, e ele respondeu:
     - Ficai sabendo que estamos no ponto mais perigoso do mar. Uma forte corrente marítima está arrastando o navio de modo que vamos todos morrer dentro de um quarto de hora. Pedi a Deus que tenha piedade de nós porque, sem a Sua ajuda, não sobreviveremos.
     Em seguida, mandou mudar a posição das velas, mas os cordames arrebentaram-se, e o navio foi levado pela correnteza em direção a uma montanha inacessível, contra a qual se chocou, partindo-se em dois. Mesmo assim, ainda tivemos tempo de nos salvar e a nossas mercadorias.
     Feito isso, o capitão nos disse:
     - Deus fez o que Lhe pareceu melhor. Cada um de nós pode tratar de cavar sua cova e dizer adeus aos outros, porque estamos num lugar funesto, de onde ninguém até hoje conseguiu sair.
     Essas palavras nos deixaram num abatimento mortal, e assim abraçamo-nos uns aos outros, os olhos molhados de lágrimas e a lamentar nosso terrível destino.
     A montanha junto da qual estávamos era parte de uma ilha comprida e grande. Sua costa era coberta de restos de embarcações que ali haviam naufragado, e uma incalculável quantidade de ossos humanos que encontrávamos a cada passo. Havia também espalhada por ali uma grande quantidade de mercadorias, de alto valor, constituindo grande riqueza. Isso aumentava a desolação em que nos encontrávamos. Ao contrário de outros lugares, onde os rios desembocam no mar, ali havia um grande rio que se distanciava do mar e penetrava na encosta rochosa através de uma gruta escura muito alta e larga. Surpreendeu-me também o fato de que as montanhas da ilha eram feitas de cristal, rubis e outras pedras preciosas.
     Sem saber como escapar dali, permanecemos na praia, como se perdêramos o juízo, à espera da morte. Antes, havíamos repartido os alimentos igualmente entre todos; assim cada um viveria mais ou menos o mesmo tempo que os outros, conforme administrasse suas provisões.
     Os que morreram primeiro foram enterrados pelos outros. Quanto a mim, enterrei todos os demais, o que não deve causar surpresa, uma vez que soube economizar melhor do que eles os alimentos que me couberam, sem contar uma outra parte que guardei comigo sem dividir com ninguém. Apesar disso, quando enterrei os últimos companheiros, o que me restava para comer era tão pouco que acreditei não sobreviver por muito tempo. Por isso, cavei minha própria sepultura, disposto a me jogar dentro dela quando visse que minha hora chegara. Enquanto cavava, mais uma vez me recriminei por ter deixado a tranquilidade de minha vida pelas viagens aventurosas.
     Mas Deus teve piedade de mim e me guiou até o rio que penetrava na rocha e se perdia dentro da enorme gruta. Disse então a mim mesmo que aquele rio deveria levar a algum lugar. Se eu construir uma jangada, quem sabe a correnteza me levará a uma terra habitada? Se, ao contrário, a embarcação afundar comigo, apenas terei mudado o tipo de morte que me espera.
     Assim pensando, comecei a trabalhar duro na construção da jangada. Quando terminei, pus nela pacotes de rubis, esmeraldas, cristais de rocha e tecidos preciosos, e embarquei com os remos, que não esqueci de fabricar. A correnteza começou a me arrastar e entreguei minha sorte nas mãos de Deus.
     Dentro da gruta não via nada. Viajei assim vários dias sem nada enxergar, nenhum ponto de luz na distância. Durante esse tempo, comi o menos que pude, poupando os alimentos; mas, mesmo assim, consumi todas as provisões que me restavam. Finalmente fui tomado pelo sono e adormeci, não sei por quanto tempo. A verdade é que, quando despertei, me vi com surpresa diante de um campo vasto, à margem de um rio onde minha jangada fora parar. À minha volta, uma quantidade de homens negros. Eu os saudei e eles me responderam, mas eu não entendia a língua que falavam. De qualquer modo, estava tão feliz por me sentir vivo que acreditei estar sonhando. Quando me persuadi de que estava efetivamente acordado, recitei para mim mesmo estes versos árabes: "Invoca o Todo Poderoso, ele virá em teu socorro. Não necessitas te preocupar com mais nada. Fecha os olhos e, enquanto estiveres dormindo, Deus mudará a tua má sorte em sorte boa."

Fonte: http://euterpe.blog.br/analise-de-obra/rimsky-korsakov-scheherazade

     Um dos negros, que entendia árabe, ouvindo-me falar assim, aproximou-se e me perguntou como chegara até ali. Respondi-lhe que tinha muita fome e que, se me dessem de comer, lhes satisfaria em seguida a curiosidade. Eles fizeram o que pedi e eu, o que prometera. Acharam minha história tão surpreendente que eu, deveria contá-la pessoalmente ao rei. Providenciaram um cavalo no qual montei e fomos em direção ao palácio. Um grupo deles ia à minha frente, guiando-me, enquanto os outros seguiam atrás, conduzindo nos ombros a jangada e os fardos com meus pertences.
     Caminhamos juntos até a cidade de Serendib, pois era nessa ilha que me encontrava. Os negros me apresentaram a seu rei. Aproximei-me do trono onde ele estava sentado e o reverenciei como se costuma reverenciar os reis das Índias, isto é, prosternei-me a seus pés e beijei o chão. O príncipe me fez levantar e mandou-me sentar a seu lado. Perguntou qual era o meu nome. Disse-lhe que me chamava Simbad, alcunhado de o marujo, por causa das muitas viagens que havia feito por mar, e que era natural de Bagdá. Ele quis saber por que estava em seus domínios e como chegara até ali. Contei-lhe tudo e ele ficou tão maravilhado que ordenou a transcrição de minha história em letras de ouro para que se conservasse para sempre nos arquivos de seu reino. Trouxeram em seguida a jangada e os pacotes, que abriram em sua presença. O rei ficou fascinado com a quantidade de madeira de aloés e âmbar, mas sobretudo com as esmeraldas, porque não possuía nada que se lhes comparasse. Então tomei a liberdade de dizer-lhe que, a partir daquele momento, não apenas minha pessoa lhe pertencia, mas também todas as riquezas que trouxera comigo. Mas ele sorriu e respondeu que, longe de aceitar minha generosa oferenda, desejava era aumentar minhas posses, como prova de sua liberalidade.
     Em resposta louvei a sua generosidade e desejei-lhe prosperidade. Ele pôs um de seus oficiais à minha disposição para que nada me faltasse. Disse-lhe então que gostaria de conhecer a ilha e sua capital.
     A ilha de Serendib, situada justamente na linha equinocial, é das mais altas do mundo. Rica em rubis, diamantes e diversos metais, possui também todas as espécies de plantas raras e pérolas que os pescadores retiravam do mar em quantidade. De volta do passeio, fui visitar o rei e pedi-lhe que me permitisse voltar à minha pátria. O que ele admitiu, oferecendo-me então um presente precioso, além de uma carta apresentando-me ao califa Aron Al Rachid. Essa carta, escrita sobre a pele suavemente amarela de um animal precioso por sua raridade, em caracteres azuis, dizia o seguinte:
     "Do rei das Índias, diante do qual marcham mil elefantes, que reside num palácio sobre cujo teto brilham cem mil rubis e que possui em seu tesouro vinte mil coroas ornadas de diamantes, ao califa Harun Al Rachid:
     "Embora o presente que vos envio esteja aquém de vosso merecimento, não deixeis de recebê-lo como de um irmão e amigo, em consideração à amizade que conservamos à amizade que conservamos por vós em nosso coração."
     O presente consistia: o primeiro, em um vaso em forma de taça ornado com um rubi e uma série de pérolas redondas; o segundo, em uma pele de serpente com enormes escamas que pareciam moedas de ouro e que tinha a propriedade de curar o doente que sob ela dormisse; o terceiro, em cinquenta mil dracmas de madeira do aloé mais raro com três grãos de cânfora do tamanho de uma pistácia; e, finalmente, uma escrava de beleza estonteante coberta de pedras preciosas.
     O navio se pôs ao mar e, após demorada e bem sucedida viagem, aportamos em Balsora, de onde me dirigi a Bagdá. A primeira coisa que fiz, após desembarcar, foi dar cumprimento às tarefas das quais o rei me encarregara. Com a carta e a bela escrava, fui à presença do califa seguido de membros de minha família que levavam os demais presentes. Quando lhe disse que quem os mandava era o rei de Serendib, o califa perguntou-me se aquele rei era de fato tão rico e sábio como se dizia. Afirmei-lhe que era tão sábio e justo que em seu reino não havia juízes, por serem desnecessários. O califa acreditou em tudo o que lhe disse, e mandou-me de volta para casa com um precioso presente.
     Simbad terminou sua história e os convivas se retiraram todos, à exceção de Hindbad, que recebeu mais cem cequins. Voltaram no dia seguinte para ouvir a história da sétima e última viagem de Simbad.

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