quarta-feira, 15 de julho de 2015

Histórias que o Vento Contou

Hoje eu quero compartilhar as Histórias que o Vento Contou, extraída do livro Contos de Andersen (Hans Christian Andersen - 2. ed. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. pag. 111-128).

Histórias que o vento contou

     Quando o Vento passa, o capim se encrespa como um lago e o trigal ondula como o mar. É a dança do Vento.
     Não ouves o Vento contar histórias?
     Sua voz é um canto, tem vários sons. Ouvido entre as árvores da floresta, tem um som; através dos buracos, das fendas e rachaduras das paredes, tem outro.
     Vês, lá no alto, o Vento tangendo as nuvens como se fossem um rebanho de ovelhas? Ouves como aqui embaixo o Vento uiva através do portão aberto, como se fosse a sentinela tocando a sua corneta? Com estranho gemido entra pela chaminé da lareira. Erguem-se as labaredas, o fogo crepita, voam fagulhas, o clarão das chamas ilumina todo o aposento. Como é bom e agradável deixar-se ficar ali no aconchego da sala aquecida, e ouvir, embevecido, o Vento lá fora, a assobiar, a uivar... Ele conhece mais lendas e histórias do que todos nós juntos. A voz dele é um canto e um gemido. Deixa-o contar.
     - Uh... Hu-u-u-u... Lá vai! Lá vai! É o estribilho da sua velha canção.

* * *

     "Junto ao Grande Baeltz jaz um velho castelo, com espessas muralhas vermelhas" - começa o Vento a sua narrativa. - "Conheço ali cada pedra. Vi-as antes, no burgo de Marsk Stig, no Cabo. O burgo ficou em ruínas, mas as pedras ressurgiram, em forma de um novo muro, de um novo castelo, em outro lugar. Tornaram-se o castelo de Borreby, tal como se ergue ainda hoje."
     "Conheci as gerações sucessivas de fidalgos e nobres damas que habitaram o castelo. Falarei agora de um deles, Valdemar Daae, e de suas filhas."
     "Valdemar Daae erguia bem alto a cabeça, pois descendia de família real e sabia algo mais do que caçar veados e esvaziar um canecão de vinho."
     "Altiva em seus vestidos de brocado, sua esposa percorria os suntuosos salões, onde a madeira polida do soalho se ocultava sob magníficos tapetes. Os móveis eram valiosos, adquiridos por muito dinheiro, e entalhados por mão de artista. Ela trouxera de dote baixelas de ouro e prata. Na adega não faltava a cerveja alemã, e na estrebaria relinchavam fogosos cavalos pretos. Era, de fato, rico o Castelo de Borreby, nos bons tempos da fartura."
     "Havia ainda a prole. Três belas raparigas: Ida, Joana e Ana Dorotéia. Até dos nomes ainda me lembro..."
     "Era gente abastada aquela, gente ilustre, nascida no esplendor e nele criada. Hu-u-u-u... Já lá vai tão longe! Lá vai, lá vai... - cantou o Vento."
     "Ali eu não via, como em outros velhos castelos," - logo voltou ele a contar - "a ilustre dama sentar-se no salão nobre, com suas aias, a fiar na roca. Em vez disso, ela dedilhava o sonoro alaúde e cantava. Não eram sempre as velhas canções dinamarquesas; eram cantos em língua estrangeira. Ali havia vida e animação, ali iam ter hóspedes ilustres, vindos de longe e de perto. A música soava, tilintavam as taças, nem eu conseguia dominar os rumores festivos. ali havia arrogância, pompa e ostentação, havia grandeza, mas não havia Deus."
     "Era o dia da Festa de Primavera" - prosseguiu o Vento. - "À noitinha, vim do Oeste, onde vira navios naufragarem e baterem, destroçados, na costa da Jutlândia ocidental. Passara veloz sobre a charneca e as matas verdejantes da costa, cruzara por terras da Feônia e vinha por cima do Grande Baelt, já sem fôlego."
     "Deitei-me, para repousar, na costa da Selândia, perto do castelo de Borreby, onde ainda se erguia a mata de imponentes carvalhos."
     "Os rapazes da região costumavam ir à mata, onde catavam ramos e galhos caídos, os maiores e os mais secos que podiam encontrar. Carregavam a lenha para o centro da vila, e com ela armavam grandes fogueiras. Rapazes e raparigas dançavam ao redor cantando."
     "Eu estava bem quieto, descansando" - dizia o Vento - mas tocava de mansinho um galho seco, que fora deixado pelo mais guapo dos rapazes. O galho ardia, e era dele a chama mais alta. Aquilo, sim, era festa, era alegria, muito maior da que havia dentro dos muros do rico castelo de Borreby."

* * *

     "Pela estrada, rumo ao castelo, em carruagem dourada, puxada por seis cavalos, vinham a ilustre dama e suas três filhas, três graciosas flores, jovens e delicadas: a rosa, a açucena e a violeta. A mãe era uma garbosa tulipa, não saudou ninguém no bando, que parou de brincar e fez reverências, apresentando cumprimentos respeitosos. Parecia até uma flor de haste frágil: receava curvar-se para cumprimentar. A rosa, a açucena e a violeta... Sim, vi-as, todas três. Qual delas seria, um dia, a rainha da fogueira?"
     Uh-hu-u-u-u... Lá foram elas, e lá vou eu, lá vou eu! - exclamava o Vento.
     "A carruagem passou com elas, e os jovens camponeses continuaram a dançar. As vilas e cidades adjacentes festejavam o verão."
     "Mas à noite, quando me levantei" - continuou o Vento - "a nobre senhora deitou-se para nunca mais se levantar. Valdemar Daae teve um passageiro assomo de tristeza e reflexão: - A mais altiva das árvores pode dobrar-se, mas não se quebrar - dizia uma voz dentro dele. As filhas choravam e toda a gente no castelo enxugava os olhos, mas a senhora Daae partira para longe. E também eu parti para longe, longe ... rematou o Vento."

* * *

     "Vim outra vez, vim muitas vezes. Passando por terras da Feônia e por águas do Baelt, eu vinha repousar nas praias de Borreby, junto da majestosa floresta de carvalhos. Ali faziam seu ninho a garça, as pombas do mato, os corvos azuis e até a cegonha negra. Era no começo do ano, umas aves tinham ovos, e outras, filhotes. Como voavam, como gritavam! Ouvia-se bater o machado, um bater contínuo, sem interrupção. A mata estava sendo derrubada. Valdemar Daae queria construir um grandioso navio, um navio de guerra, de três cobertas, que o rei certamente haveria de comprar, e por isso a mata vinha abaixo. A floresta, marco e guia dos marinheiros, refúgio das aves... O açor ergueu o vôo, assustado, enquanto seu ninho era destruído. A garça e todas as aves da mata perderam seu abrigo, voavam atarantadas, soltando gritos de pavor e de ódio, e eu bem que as entendia. Gralhas e corvos gritavam em voz alta, em voz zombeteira: Já, pra fora do ninho! Já, já, já..."
     "Em plena mata, entre a turma de trabalhadores, estavam Valdemar Daae e suas três filhas. Todos se riam do clamor aflito das aves. Apenas a filha mais nova, Ana Dorotéia, teve pena delas e, quando iam derrubar uma árvore meio morta, em cujos galhos nus a cegonha negra tinha construído seu ninho, onde os filhotes punham a cabeça de fora, ela pediu com água nos olhos, e a árvore foi poupada. Pôde ficar de pé, com o ninho da cegonha negra. Mas era muito pouco."
     "Machados e serras continuaram sua faina incansável e destruidora. Começou-se a construir o navio de três cobertas. O mestre construtor era de origem humilde, mas de alma nobre. Seus olhos e sua fronte bem mostravam o quanto ele era inteligente. Valdemar Daae gostava de ouvi-lo contar casos e não gostava menos de ouvi-lo a pequena Ida, a filha mais velha, de quinze anos. E, enquanto construía o navio para o pai, o mestre construía, para si próprio, castelos no ar - um castelo de sonhos, no qual ele e a pequena Ida viviam como marido e mulher. De fato, assim teria sido se o seu castelo fosse de pedra e cal, com defesas e valas, florestas e parques. Contudo, com toda a sua inteligência, o mestre não passava de uma pobre ave de arribação. E pode o pardal meter-se em dança de garça? Hu-hu-u-u... Voei para longe, e ele também voou para longe, pois não queria mais ficar, e a pequena Ida teve de vencer sua mágoa. Que remédio tinha ela senão esquecer?"

* * *

     "Na estrebaria relinchavam os cavalos negros, dignos de serem vistos e admirados. E foram, de fato, vistos e admirados. O almirante fora enviado pelo próprio rei para ver o novo navio de guerra e negociar a sua compra. Elogiou em voz alta os fogosos cavalos. Ouvi-o muito bem" - disse o Vento - "pois segui os nobres senhores pela porta aberta, e espalhei colmos dourados a seus pés. Valdemar Daae queria ouro, o Almirante queria os cavalos pretos e, por isso, os elogiava tanto. Mas seus louvores não foram compreendidos, e o navio não foi comprado: continuou na praia, coberto de pranchas, uma Arca de Noé que nunca foi à água. Dava pena ver..."
     "No inverno, quando o campo se cobria de neve, o gelo flutuante enchia o Baelt e eu o tocava pela costa acima" - contou o Vento. - "Corvos e gralhas, cada qual mais negro que o outro, vinham em grandes bandos, pousavam no navio abandonado - no pobre navio morto, deserto, solitário na extensa praia. Ali gritavam os corvos e as gralhas, lamentando o destino da floresta que se fora, com os ninhos destruídos, as aves escorraçadas, desnorteadas, os filhotes perdidos... E tudo, tudo por nada, por cauda daquele traste imenso, daquela soberba embarcação que nunca sairia ao mar, de velas enfunadas."
     "Fiz remoinhos na neve, que se acumulava em torno do navio como grandes vagas congeladas. Eu fiz ouvir minha voz, ouvir o que um tufão tem a dizer. Sei que contribuí com a minha parte para que ele aprendesse  que um navio deve saber - isto é: o que é uma tempestade em alto mar. Uh-u-u-u... Lá vai, lá vai..."
     "E o inverno se foi. Passaram o inverno e o verão e continuam a passar, vão e vem, como eu mesmo, como a neve cai em flocos, como caem as flores da macieira e como tombam as folhas. Tudo, tudo passa, como eu. Até os homens passam..."
     "As filhas ainda eram novas, a pequena Ida era uma rosa, um encanto para os olhos, tal como fora o encanto do construtor naval. Eu muitas vezes afagava-lhe os longos cabelos castanhos, quando ela, imersa em meditações, passava horas esquecidas junto da macieira do pomar, sem notar sequer que eu lhe espargia flores nos cabelos soltos. Continuava absorta, a fitar o sol vermelho e o céu dourado, entre os arbustos sombrios e as árvores do pomar."
     "Sua irmã era a açucena brilhante e altiva. Joana tinha, como a mãe, uma haste frágil. Gostava de ficar no grande salão, de cujas paredes pendiam os retratos da família e dos antepassados. As damas estavam retratadas em veludo e seda, tendo, sobre os cabelos em tranças, pequeninos chapéus entretecidos de pérolas. Belas mulheres... O esposo aparecia em armadura, ou então num custoso manto forrado de pele de esquilo, a gola azul, de rendas. Trazia a espada sobre a coxa, e não na cintura. Quando penderia, um dia, da parede o retrato de Joana? Como seria o seu fidalgo marido? Era nisso que ela pensava e no que falava, eu bem que o ouvia, quando atravessava o longo corredor, entrava no salão e tornava a sair."
     "Ana Dorotéia, pálida violeta, criança de quatorze anos, era quieta e pensativa. Seus grandes olhos azuis pareciam meditativos, mas o sorriso infantil lá estava, em seus lábios. Eu não o poderia ter afastado deles, ainda que o quisesse, e eu naturalmente não queria."
     "Encontrava-a no pomar, nos atalhos e no campo, ela catava ervas e flores, das que o pai podia usar na destilação de bebidas e remédios que ele sabia preparar. Valdemar Daae era soberbo, arrogante, mas era também inteligente e sabia fazer uma porção de coisas."
     "Começou-se a notar isso, e logo ele se tornou o assunto de comentários e murmúrios: em sua lareira o fogo ardia até no verão. A porta do quarto vivia fechada. Aquilo prosseguia, por dias e noites sucessivos, e ele próprio quase nada falava a respeito do que estava fazendo. As forças da natureza devem ser dominadas em silêncio. Ele, certamente, não tardaria a descobrir o que havia de mais precioso: o ouro."
     "Por isso o fumo se desprendia da chaminé, as labaredas erguiam-se na lareira, o fogo crepitava. Sei de tudo, pois lá estive" - contou o Vento. - "Deixa que vá, que vá para longe - cantava eu, através da chaminé. Tudo se esvairá em fumo, fuligem e cinzas. Acabas é queimando a ti próprio, te consumindo nas chamas. Deixa... Deixa que vá. Valdemar Daae, porém, não deixava aquilo."
     "Os garbosos cavalos da cavalariça - por onde andariam? As antigas baixelas de prata e ouro, nas arcas e nos armários, as vacas no pasto, os bens e as terras, tudo se foi, tudo se derreteu, derreteu sim, num só crisol, no cadinho de ouro do qual nenhum ouro saiu."
     "Foram-se esvaziando os celeiros, a despensa, a adega e os paióis. Havia menos gente e mais ratos. Uma vidraça partiu-se, outra quebrou, eu não precisava mais entrar pelas porta" - disse o Vento. - "Fumaça saindo da chaminé é sinal de boa comida, de fartura. Ali o fumo se elevava aos céus, dia e noite, mas aquele fogão devorara a comida, a fartura, tudo consumira ele, em busca do ouro fugidio."
     "Soprei através da porta do castelo, como uma sentinela" - disse o Vento. - "Virei o catavento, que fez um ruído como se fosse a sentinela adormecida roncando no interior da torre, mas também ali não havia sentinela, só havia ratos e camundongos. A pobreza punha a mesa, a pobreza enchia o guarda-roupa e o guarda-comidas, as portas se desprendiam dos gonzos, apareciam fendas e rachaduras. E entrava e saía à vontade, por isso sei tão bem de tudo quanto se passou."
     "Envoltos em fumo e cinzas, entre preocupações e noites sem sono, os cabelos e a barba se tornaram grisalhos, a pele se tornou enrugada e amarela, e os olhos sempre procurando, ávidos, o ouro, o almejado ouro que nunca vinha."
     "Soprei-lhe fumo e cinzas no rosto e na barba. Vieram dívidas em vez de ouro. Eu cantava através das vidraças partidas e das fendas, soprava contra a cama desmontável onde dormiam as filhas, onde se amontoavam as roupas desbotadas, surradas, que tinham de durar sempre, pois roupas novas não havia. Pobres meninas, criadas para uma vida bem diversa, nascidas no esplendor e atiradas à miséria. Eu era o único que ainda cantava alto no castelo. Cobri tudo de neve. Não tinha mais lenha, a mata de onde tiravam lenha fora derrubada. O frio era de gelar. Eu entrava pelas seteiras e atravessava galerias, saltava sobre as empenas e os muros, para manter a minha agilidade. Lá dentro as filhas estavam deitadas na cama, por causa do frio. O pai se metia embaixo do cobertor de peles. Não havia mais o que comer nem o que queimar. Que vida de fidalgo! Hu-u-u-u-u-u... Deixa que vá. Deixa... O senhor Daae é que não deixava o que começara."
     - Depois do inverno vem a primavera - dizia ele. - Depois das privações virão os bons tempos. Mas como eles custam a chegar. Toda a propriedade já está hipotecada. Cheguei ao extremo. Sim: mas logo virá o ouro. Virá pela Páscoa."
     "Ouvi-o murmurar para a teia de aranha: Tu, pequeno e hábil tecelão, ensinas-me a persistir. Se tua teia é estraçalhada, recomeças o trabalho e o levas até o fim. De novo destroem tua casa. Incansável e perseverante, metes de novo mãos à obra. É o que se deve fazer. No fim virá a recompensa."
     "Chegou a manhã de Páscoa. Os sinos dobravam, o sol brincava no céu. Ardendo em febre, o senhor Daae passara a noite em claro, cozinhando, caldeando e destilando. Ouvi-o gemer como uma alma penada, ouvi-o orar, percebi que ele continha a respiração. O lampião se apagara e ele nem o notara. Soprei as brasas, e o brilho vermelho das chamas refletiu-se em seu rosto lívido, onde os olhos se entressumiam nas órbitas profundas. De súbito, porém, os olhos se dilataram, tornaram-se cada vez maiores, como se lhe fossem saltar das órbitas."
     "A retorta de alquimista! Alguma coisa brilha dentro dela! E incandescente, puro e pesado. Ele ergueu o vidro com mãos trêmulas e gritou com voz rouca: Ouro! Ouro! Estava prestes a desmaiar, eu o poderia ter derrubado facilmente com um sopro" - disse o Vento - "mas me limitei a soprar as brasas, e segui-o através da porta, até onde as filhas padeciam de frio. Sua roupa estava coberta de cinzas, que lhe branqueavam a barba e os cabelos desalinhados. Ele endireitou o corpo, ergueu o seu tesouro no frágil vidro de retorta. Achei! Achei! É ouro! - gritou ele, brandindo o vidro, que brilhava aos primeiros raios do sol. A mão tremeu e o vidro, caindo ao chão, se fez em mil pedaços. Lá se fora a sua última esperança... Hu-u-u-u... Lá se foi. E também eu fui, também eu parti, deixando a casa do homem que quisera fabricar ouro."
     "Já pelo fim do ano, no tempo dos dias curtos, quando o nevoeiro vem com o seu grande manto e apaga tudo, deixando gotas de água nos frutinhos vermelhos e nos galhos desfolhados, voltei com novo ímpeto, arejei tudo, limpei o céu e quebrei ramos secos, o que, sem ser grande trabalho, deve ser feito. Mas não fui só eu que varri naquele dia. Outra limpeza foi feita no castelo de Borreby. Ove Ramel, de Basnaes, inimigo de Valdemar Daar, lá apareceu. Comprara a hipoteca, com direitos de posse sobre toda a propriedade. Tamborilei nas vidraças partidas, bati com as portas arrebentadas, assobiei pelas rachaduras e fendas, gemi lugubremente, enfim, tudo fiz para que o senhor Ove perdesse a vontade de ficar por ali. Ida e Ana Dorotéia desfizeram-se em pranto. Joana manteve-se erecta e pálida, mordeu o polegar, até sair sangue, como se aquilo lhe valesse alguma coisa. Ove Ramel fez ao senhor Daae a concessão de deixá-lo ficar no castelo até o fim dos seus dias, mas não recebeu nenhum agradecimento pela oferta. Vi o antigo senhor, destituído de suas terras, erguer mais altivo ainda a cabeça, empertigar-se e sair. Investi com uma rajada impetuosa contra o castelo e as velhas tílias, quebrando um dos galhos mais grossos - e não era nenhum galho podre. O galho ficou deitado em frente ao portão, como uma vassoura, como se alguém quisesse varrer. E tudo foi varrido."
     "Foi um dia duro, uma hora de provação, em que era difícil alguém manter a cabeça erguida. Mas aquela gente tinha a cerviz rija. Possuíam a roupa do corpo, nada mais. Sim, havia ainda a retorta, recentemente comprada, cheia de resíduos raspados do chão - o tesouro que prometera e não dera. Valdemar Daae ocultou-o no peito, tomou do cajado. E o castelão outrora rico e poderoso saiu com suas três filhas, deixando para sempre o castelo de Borreby. Soprei-lhe rajadas frias nas faces afogueadas, acariciei-lhe a barba grisalha e os longos cabelos brancos, cantei à minha moda: Hu-u-u-u... Lá vai, lá vai. E foi o fim da riqueza e do esplendor."
     Ida e Ana Dorotéia iam ao lado do velho. Joana voltou-se do portão. Mas de que adiantaria? A sorte não viraria mais. Ela fitou as pedras vermelhas das paredes, vindas do brugo de Marsk Stig, e pensou nas outras duas:

     A mais velha tomou pela mão a mais nova
     E saíram pelo vasto mundo afora...

     "Pensaria ela nessa canção? Lá iam as três. Acompanhavam o pai. Iam caminhando pela estrada, a mesma estrada que tinham percorrido em luxuosas carruagens. Encaminhavam-se trôpegos, para uma casa de barro, alugada a dez marcos por ano - seu novo palácio, de paredes nuas e panelas vazias. Gralhas e corvos voavam por cima deles e gritavam, zombeteiros: Fora do ninho! Já, já, já!, exatamente como as aves haviam gritado na floresta Borreby, quando as árvores eram derrubadas."
     "O senhor Daae e suas filhas bem que o ouviam. Soprei-lhes em volta dos ouvidos. Não valia a pena escutar aquilo."
     "Entraram assim na casa de barro, e eu fui para longe, passei por campos e charcos, varei sebes nuas e florestas desfolhadas, busquei, através das águas, terras distantes. E lá vou... Lá vou, pelos anos e séculos afora..."

* * *

     Como estariam vivendo Valdemar Daae e suas filhas? o Vento o conta:
     "A última delas que vi - e a vi pela última vez - foi Ana Dorotéia, a pálida violeta. Estava velha e curvada, meia centena de anos havia passado. Foi quem viveu mais tempo, e de tudo sabia."
     "Na charneca, na cidade de Viborg, ficava situado o novo e belo palacete do deão, de pedras vermelhas e empenas esculpidas. A fumaça saía, em grossos novelos, da chaminé. A meiga dona de casa e suas filhas estavam sentadas no balcão, contemplando o jardim e o tojal. O que estariam vendo? Viam o ninho de cegonha lá fora, na casa em ruínas. O pouco que ainda restava do telhado estava coberto de musgo e capim, mas o que mais cobria a choupana era o ninho de cegonha, única parte cuidada, pois a cegonha o mantinha em boas condições."
     Era uma casa para se olhar e não para se tocar. Eu tinha de passar com todo o cuidado por cima dela" - disse o Vento. - Por causa do ninho de cegonha, a casa foi deixada de pé - um traste a enfeitar o campo. O deão porém, não queria afugentar a cegonha e, por isso, a casinhola continuava de pé, e a pobre velha pôde ficar morando ali. Se a infeliz tinha casa, devia-o à ave. Seria em agradecimento por ter ela, uma vez, salvo o ninho do irmãos selvagem da cegonha, na floresta de Borreby? Naquele tempo a pobre velha era ainda menina, era a fina e pálida flor de um aristocrático jardim. Ela tudo recordava, a pobre Ana Dorotéia. E pensava:
     "Os homens podem chorar, podem gemer como o vento nos juncos. Nenhum sino badalou sobre tua campa, Valdemar Daae! Os meninos pobres da escola não cantaram quando o antigo senhor de Borreby foi enterrado. Tudo se acaba, até mesmo a miséria. A irmã Ida tornou-se esposa de um camponês. Para o pai foi esse o golpe mais duro. Ter por genro um rude servo da gleba... Também ele já deve estar embaixo da terra, a estas horas, e tu também, Ida... Só para mim, pobre velha, ainda não acabou tudo. Vinde libertar-me, Jesus Cristo!"
     "Assim orava Ana Dorotéia, na humilde choupana, que ainda estava de pé graças ao ninho de cegonha. "Eu mesmo me encarreguei da mais corajosa das irmãs" - disse o Vento. - "Ela apresentou-se como homem e engajou-se num navio. Era de poucas falas, grave no aspecto, mas disposta a trabalhar. Só não sabia subir ao mastro. Lancei-a, pois, do mastro ao mar, com forte rajada, antes que alguém descobrisse que ela era uma mulher. Creio que foi uma boa ação" - contou o Vento."
     "Numa manhã de Páscoa, como aquela em que Valdemar Daae julgara ter encontrado o ouro, ouvi cantarem um salmo entre as paredes arruinadas, embaixo do ninho da cegonha. Era o último canto de Ana Dorotéia."
     "Não havia vidraça - só um buraco na parede. O sol, como uma bola de ouro, por ali entrou. Que brilho! Com o olhar abatido e o coração despedaçado, ela o viu pela última vez."
     "A cegonha dera-lhe abrigo até a morte. Eu cantei sobre o seu túmulo. Cantei também junto do túmulo de seu pai. Sei onde ficam os túmulos deles, mas ninguém mais o sabe."
     "Novos tempos, tempos diferentes... Velhas estradas desapareceram, transformadas em campos cultivados. Túmulos cederam lugar a estradas públicas. Dentro em breve a locomotiva, com sua fileira de carros, passará por sobre velhas sepulturas, esquecidas como os nomes, como tudo nesse mundo. Hu-uh-u-u-u... Lá se foi..."
     "É esta a história de Valdemar Daae e de suas filhas. Quem puder, que a conte melhor" - concluiu o Vento, mudando de rumo.
     E desapareceu ao longe.

Fonte: http://naturlink.sapo.pt/Natureza-e-Ambiente/Fichas-de-Especies/content/Ficha-da-Cegonha-preta?bl=1&viewall=true

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