quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

A História dos Três Porquinhos

Hoje eu quero compartilhar a história dos Três Porquinhos, de Joseph Jacobs, extraída do livro Contos de Fadas (edição, introdução e notas Maria Tatar; tradução Maria Luiza X. de A. Borges - 1. ed. com. e il. - Rio de Janeiro: Zahar, 2013. pag. 218-223).

A História dos Três Porquinhos
Joseph Jacobs

     Era uma vez, quando porcos faziam rimas,
     Macacos mascavam tabaco,
     Galinhas cheiravam rapé para ficarem fortes,
     E patos faziam quac, quac, quac, Oh!

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Os_Tr%C3%AAs_Porquinhos

     Havia uma velha porca que tinha três porquinhos, e como não tinha o bastante para sustentá-los, mandou-os partir em busca da sorte. O primeiro que se foi encontrou um homem com um feixe de palha, e disse a ele:
     "Por favor, homem, me dê essa palha para eu construir uma casa."
     O homem assim fez, e o porquinho construiu uma casa com ela. Logo veio um lobo, e bateu à porta e disse:
     "Porquinho, porquinho, deixe-me entrar."
     Ao que o porquinho respondeu:
     "Não, não, pelos fios da minha barba, aqui você não vai pisar."
     A isto o lobo respondeu:
     "Então vou soprar, e vou bufar, e sua casa rebentar."
     E assim ele soprou, e bufou, e fez a casa ir pelos ares e comeu o porquinho.
     O segundo porquinho encontrou um homem com um feixe de tojo e disse:
     "Por favor, homem, me dê esse tojo para eu construir uma casa."
     O homem assim fez, e o porco construiu a sua casa. Então apareceu o lobo e disse:
     "Porquinho, porquinho, deixe-me entrar."
     "Não, não, pelos fios da minha barba, aqui você não vai pisar."
     "Então vou soprar, e vou bufar, e sua casa rebentar."
     E assim ele soprou, e bufou, e bufou, e soprou e finalmente fez a casa ir pelos ares e devorou o porquinho.
     O terceiro porquinho encontrou um homem com um fardo de tijolos, e disse:
     "Por favor, homem, me dê esses tijolos para eu construir uma casa."
     O homem deu-lhe então os tijolos e ele construiu sua casa com eles. Logo veio o lobo, como tinha feito com os outros porquinhos, e disse:
     "Porquinho, porquinho, deixe-me entrar."
     "Não, não, pelos fios da minha barba, aqui você não vai pisar."
     "Então vou soprar, e vou bufar, e sua casa rebentar."
     Bem ele soprou, e bufou, e soprou e bufou, e bufou e soprou; mas não conseguiu pôr a casa abaixo. Quando descobriu que, por mais que soprasse e bufasse, não conseguiria derrubar a casa, disse:
     "Porquinho, sei onde há um belo campo de nabos."
     "Onde?" perguntou o porquinho.
     "Oh, nas terras do Sr. Silva, e se estiver pronto amanhã de manhã virei buscá-lo; iremos juntos e colheremos um pouco para o jantar."
     "Muito bem", disse o porquinho, "estarei pronto. A que horas pretende ir?"
     "Oh, às seis horas."
     Bem, o porquinho se levantou às cinco e chegou aos nabos antes de o lobo chegar (ele chegou por volta das seis). O lobo gritou:
     "Porquinho, está pronto?"
     O porquinho respondeu: "Pronto? Já fui e já voltei, e tenho uma bela panela cheia para o jantar."
     O lobo ficou muito irritado, mas pensou que conseguiria pegar o porquinho de uma maneira ou de outra. Assim, disse: "Porquinho, sei onde há uma bela macieira."
     "Onde?" perguntou o porquinho.
     "Lá no Jardim Feliz", respondeu o lobo. "E se não me enganar virei buscá-lo amanhã, às cinco horas, para colhermos algumas maçãs."
     Bem, na manhã seguinte o porquinho pulou da cama às quatro horas e foi colher as maçãs, esperando estar de volta antes que o lobo chegasse. Mas o caminho era mais longo, e ele teve de subir na árvore. Assim, bem no instante em que ia descer lá de cima, viu o lobo se aproximar, o que, como você pode supor, o deixou muito apavorado. Ao chegar, o lobo disse:
     "Mas como, porquinho! Chegou antes de mim? As maçãs são boas?"
     "São ótimas," disse o porquinho, "vou lhe jogar uma."
     Jogou-a tão longe que, enquanto o lobo foi apanhá-la, o porquinho saltou no chão e correu para casa. No dia seguinte o lobo apareceu de novo e disse ao porquinho:
     "Porquinho, há uma feira na aldeia esta tarde. Você vai?"
     "Com certeza", disse o porco, "irei. A que horas estará pronto?"
     "Às três", disse o lobo. Assim o porquinho partiu antes da hora, como de costume, e chegou à feira, e comprou uma desnatadeira, que estava levando para casa quando viu o lobo chegando. Não sabia o que fazer. Assim, entrou na desnatadeira para se esconder e com isso a fez girar, e ela foi rolando morro abaixo com o porco dentro, o que deixou o lobo tão apavorado que ele correu para casa sem ir à feira. Logo o lobo foi à casa do porco e contou-lhe o quanto se assustara com uma coisa redonda enorme que passara por ele, descendo morro abaixo. Então o porquinho disse:
     "Ah, então eu o assustei. Eu tinha passado pela feira e comprado uma desnatadeira. Quando vi você, entrei nela, e rolei morro abaixo."
     Desta vez o lobo ficou de fato muito zangado e declarou que iria devorar o porquinho, e que entraria pela chaminé para pegá-lo. Quando o porquinho viu o que ele ia fazer, pendurou na lareira o caldeirão cheio d'água e fez um fogo alto. No instante em que o lobo estava descendo, o porquinho destampou a panela e o lobo foi parar lá dentro. Num segundo ele tampou de novo a panela, cozinhou o lobo, comeu-o no jantar, e viveu feliz para sempre.

Fonte: http://bloguinho-infantil.blogspot.com.br/2011/05/contos-de-fadas-de-joseph-jacobs.html

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

A Leste do Sol e a Oeste da Lua

Hoje eu quero compartilhar a história A Leste do Sol e a Oeste da Lua, de Peter Christen Asbjornsen e Jorgen Moe, extraída do livro Contos de Fadas (edição, introdução e notas Maria Tatar; tradução Maria Luiza X. de A. Borges - 1. ed. com. e il. - Rio de Janeiro: Zahar, 2013. pag. 199-212).

A leste do sol e a oeste da lua
Peter Christen Asbjornsen e Jorgen Moe

     Era uma vez um camponês muito pobre. Seus filhos eram tantos que ele não tinha comida nem roupa bastante para lhes dar. Todos eram crianças bonitas, mas a mais bonita era a filha caçula, que era uma beleza infinita.
     Numa noite de quinta-feira, quando o outono já ia tarde, o tempo estava tempestuoso e uma escuridão pavorosa reinava lá fora. A chuva caía com tanta força e o vento soprava tão furiosamente que as paredes da cabana tremiam. Todos estavam sentados ao pé do fogo, ocupados com uma coisa ou outra. Foi então que, de repente, ouviram-se três pancadinhas na janela. O pai saiu para ver o que estava acontecendo. Ao chegar lá fora, viu um enorme urso branco.
     "Boa noite para o senhor", disse o urso branco.
     "Para você também", disse o homem.
     "Quer me dar sua filha mais nova em casamento? Se o fizer, torná-lo-ei tão rico quanto agora é pobre", disse o urso.
     Bem que passou pela cabeça do homem que não seria má ideia ser rico, mas ele achou que devia conversar com a filha primeiro. Assim, entrou em casa e contou a todos sobre o enorme urso branco que estava lá fora e que prometera torná-los todos ricos, contanto que pudesse se casar com a filha mais nova.
     Imediatamente a menina exclamou: "Não!" Nada pôde convencê-la a mudar de ideia. O homem saiu e combinou com o urso branco que ele deveria voltar na quinta-feira seguinte para ter uma resposta. Nesse meio-tempo, conversou com a filha, não se cansando de ressaltar o quanto seriam ricos e a fortuna que ela própria teria. Finalmente a menina concordou. Assim, lavou e remendou seus trapinhos, enfeitou-se, e ficou tão elegante quanto podia. Não precisou de muito tempo para se preparar para a viagem, pois não tinha grande coisa para levar.
     Na noite da quinta-feira seguinte o urso veio buscar a mocinha. Ela subiu nas costas dele com sua trouxa, e lá se foram. Quando já tinham trilhado um bom pedaço de chão, o urso branco perguntou: "Não está com medo?"
     Não, não estava.
     "Segure firme no meu couro peludo e não terá nada a temer", disse o urso.
     Os dois andaram um caminho muito, muito comprido, até chegarem a uma montanha. O urso branco deu uma pancada na pedra e uma porta se abriu. Entraram num castelo onde havia muitos cômodos, todos iluminados e rutilantes de prata e ouro. Uma mesa deslumbrante já estava posta. O urso branco deu à menina uma sineta de prata. Se quisesse alguma coisa, bastava tocar e a teria imediatamente.

Fonte: http://www.artpassions.net/dulac/dulac.html

     Bem, já era tarde da noite depois que ela comeu e bebeu alguma coisa. Com muito sono depois da longa jornada, resolveu se deitar. Assim, pegou a sineta para tilintá-la. Mal a tinha na mão, encontrou-se num aposento com uma cama que era de uma alvura sem par, com travesseiros e cortinas de seda, e franjas de ouro. Tudo no quarto era ouro e prata. Depois que ela se deitou e apagou a luz, um homem entrou e se deitou ao seu lado. Ela nunca conseguia vê-lo, pois ele nunca chegava antes que ela tivesse apagado a luz e estava de pé e longe dali antes do nascer do sol.
     Durante algum tempo a menina sentiu-se satisfeita, mas logo tornou-se silenciosa e triste. Passava o dia todo sozinha, e morria de saudades de sua casa, do pai, da mãe, dos irmãos e das irmãs. Um dia, quando o urso branco lhe perguntou o que a estava afligindo, respondeu que se sentia solitária e entediada e queria visitar sua casa para ver o pai, a mãe, os irmãos e as irmãs. Era por isso que estava triste, por não poder ir vê-los.
     "Bem, bem", disse o urso. "Talvez possamos encontrar uma solução para isso. Mas tem que me prometer que só vai falar com sua mãe quando houver gente em volta para ouvir. Nunca fale com ela a sós. Ela tentará pegar você pela mão e levá-la com ela para outro quarto. Mas se você fizer isso, atrairá uma maldição sobre nós dois."
     No domingo o urso branco foi vê-la e disse que estava pronto para levá-la ao encontro do pai e da mãe. Lá se foram os dois, ela montada nas costas do urso. Fizeram ma longa viagem. Finalmente chegaram a uma casa suntuosa, e ela viu os irmãos e as irmãs correndo em volta dela. Foi uma alegria ver como era tudo lindo.
     "Seu pai e sua mãe moram aqui agora", disse o urso branco. "Não esqueça o que eu lhe disse, ou será a nossa desgraça."
     Não, Deus me livre, ela não esqueceria. Ao chegarem à casa, o urso branco deu meia-volta e partiu.
     A menina entrou para ver o pai e a mãe e todos ficaram eufóricos. Como poderiam agradecer à filha pelo que fizera pela família? Agora tinham tudo com que já tinham sonhado, e as coisas não poderiam estar melhores. Estavam todos curiosos para saber onde ela estava morando e como estava se arranjando.
     Bem, ela lhes contou, morar onde estava morando era muito confortável. Tinha tudo que podia desejar. Não faço ideia do que mais ela disse, mas é pouco provável que tenha contado a história toda para alguém. Naquela tarde, depois  do jantar, tudo aconteceu exatamente como o urso previra. A mãe quis conversar a sós com a filha em seu quarto. Mas ela lembrou o que o urso branco dissera e se recusou a subir para o segundo andar. "O que temos para conversar pode esperar", disse, e se desvencilhou da mãe. No fim das contas, porém, de alguma maneira, a mãe conseguiu enredá-la e a menina teve de lhe contar toda a história. Contou-lhe como, todas as noites, quando se deitava, um homem entrava em seu quarto assim que a luz era apagada. Nunca o vira, porque ele estava sempre de pé e longe do quarto quando ela acordava. Sentia-se imensamente triste, porque queria muito vê-lo, sobretudo porque passava os dias inteiros sozinha e era tudo tão enfadonho e solitário.
     "Oh, minha querida", disse a mãe. "Você anda dormindo com um troll ou coisa parecida! Vou lhe dar uns bons conselhos sobre como conseguir espiá-lo. tome este toco de vela e esconda-o na roupa. Quando estiver dormindo, pode acendê-lo, mas tome cuidado para não pingar nem uma gota de cera nele."
     Ela pegou a vela e a escondeu em suas roupas, e naquela noite o urso branco voltou para buscá-la.
     Depois de caminharem uma curta distância, o urso branco perguntou se tudo acontecera como ele previra. Ela não pôde negar que sim. "Cuidado," ele disse, "se seguir o conselho da sua mãe, atrairá uma maldição sobre nós dois e estaremos ambos liquidados." Não, de maneira nenhuma!
     Após chegar em casa, a menina foi se deitar e tudo aconteceu como das outras vezes. Um homem entrou e se deitou ao seu lado. No meio da noite, porém, depois de se certificar de que ele dormia a sono alto, ela se levantou e acendeu a vela. Deixou a chama brilhar sobre ele e viu que era o mais belo príncipe que se possa imaginar. Apaixonou-se tão profundamente por ele que pensou que não seria capaz de continuar vivendo a menos que lhe desse um beijo, naquele instante mesmo. E assim fez. Mas, enquanto o beijava, três gotas de cera quente pingaram na camisa dele e ele despertou.
     "O que você fez?" ele exclamou. "Agora atraiu uma maldição sobre nós dois. Se tivesse esperado apenas um ano, eu teria sido libertado! Tenho uma madrasta, e ela me enfeitiçou de tal modo que sou urso de dia e homem à noite. Terei de deixar você e ir à procura dela. Ela mora num castelo a leste do sol e a oeste da lua. Mora lá também uma princesa, com um nariz de três varas de comprimento, e é ela a mulher que terei agora de desposar."
     A menina chorou e lamentou a sua sorte, mas aquilo não adiantou nada. O príncipe tinha de partir. Ela perguntou se podia acompanhá-lo. Não, não podia. "Então diga-me como chegar lá", ela pediu. "Com certeza posso pelo menos procurar por você." Sim, isso ela podia fazer, mas não havia nenhuma estrada que levasse para onde ele ia. Ficava a leste do sol e a oeste da lua, e ela jamais conseguiria descobrir como chegar lá.

Fonte: http://www.wikiart.org/en/kay-nielsen/tell-me-the-way-then

     Na manhã seguinte, quando acordou, tanto o príncipe quanto o castelo tinham desaparecido, e ela se viu deitada num pequeno canteiro verde no meio de uma floresta escura e lúgubre. A seu lado estava a mesma trouxa de trapinhos que trouxera de casa.
     Depois de esfregar os olhos para afugentar o sono e de chorar até ficar exausta, tomou seu caminho, andando dia após dia até que avistou um alto penhasco. Ali perto estava sentada uma velha, brincando com uma maçã de ouro, que jogava para o ar. A menina perguntou-lhe se sabia como encontrar um príncipe que estava morando com sua madrasta num castelo a leste do sol e a oeste da lua e que estava na obrigação de se casar com uma princesa com um nariz gigante.
     "Como ouviu falar desse príncipe?" perguntou a velha. "Talvez você seja a moça que lhe estava destinada?" Sim, era ela. "Bem, bem, então é você, não é?" disse a velha. "Tudo que sei é que ele mora num castelo a leste do sol e a oeste da lua e que você chegará lá ou tarde demais ou nunca. Mas vou lhe emprestar meu cavalo para que a leve até minha vizinha mais próxima. Talvez ela possa ajudá-la. Quando chegar lá, basta dar uma batidinha embaixo da orelha esquerda do cavalo e mandá-lo voltar para casa. E se quiser levar com você esta maçã de ouro, não faça cerimônia."
     A menina montou o cavalo e cavalgou por muito, muito tempo. Chegou a outro penhasco, e perto dele estava sentada uma outra velha, que segurava um pente de ouro. A menina perguntou a ela se sabia o caminho do castelo que ficava a leste do sol e a oeste da lua. e a velha respondeu, como a primeira, que não sabia nada sobre aquele castelo, a não ser que ficava a leste do sol e a oeste da lua. "Você chegará lá ou tarde demais ou nunca. Mas vou lhe emprestar meu cavalo para que a leve até minha vizinha mais próxima. Talvez ela possa ajudá-la. Quando chegar lá, basta dar uma batidinha embaixo da orelha esquerda do cavalo e mandá-lo voltar para casa." A velha deu-lhe seu pente de ouro. Talvez encontrasse algum uso para ele, disse à menina.
     A menina montou e, mais uma vez, cavalgou por muito, muito tempo. Finalmente chegou a um outro penhasco, e perto dele viu uma outra velha. Esta estava fiando com uma roda de fiar de ouro. Perguntou-lhe também se sabia como encontrar o príncipe e onde se erguia o castelo que ficava a leste do sol e a oeste da lua. Mas tudo se passou exatamente como antes. "Talvez você seja a moça que lhe estava destinada?" Sim, era ela. Mas aquela mulher não tinha nenhuma ideia melhor sobre como chegar ao castelo. Sabia que ficava a leste do sol e a oeste da lua, mas só isso. "E você vai chegar lá ou tarde demais ou nunca, mas vou lhe emprestar meu cavalo para que alcance o Vento Leste e pergunte a ele. Pode ser que ele conheça essas paragens e possa soprá-la para lá. Quando o encontrar, basta dar uma batidinha debaixo da orelha esquerda do cavalo que ele trotará sozinho para casa." A velha entregou-lhe sua roda de fiar de ouro. "Pode ser que lhe sirva para alguma coisa", disse.
     A menina cavalgou durante todo um longo dia até chegar à casa do Vento Leste, mas chegou. Perguntou ao Vento Leste se ele podia dizer qual era o caminho para ir ter com o príncipe que morava a leste do sol e a oeste da lua. Sim, o Vento Leste ouvira falar volta e meia do príncipe e do castelo, mas não sabia como se chegava lá, porque nunca soprara tão longe. "Mas se quiser vou com você até o meu irmão, o Vento Oeste. Talvez ele saiba, porque é muito mais poderoso. Se montar nas minhas costas, eu a levarei lá." Sim, ela montou nas costas dele e os dois partiram numa rajada.
     Quando chegaram à casa do Vento Oeste, o Vento Leste disse a ele que a menina que trouxera estava destinada ao príncipe que morava no castelo a leste do sol e a oeste da lua. Ela saíra à procura desse príncipe e ele a trouxera até ali e gostaria de saber se o Vento Oeste sabia como chegar ao castelo. "Não", disse o Vento Oeste. "Nunca soprei tão longe. Mas se quiser vou com você até meu irmão, o Vento Sul, porque ele é muito mais poderoso que qualquer um de nós dois, e já soprou por toda parte. Talvez ele seja capaz de saber. Monte nas minhas costas e eu a levarei até ele." Sim, ela montou nas costas dele e eles viajaram até o Vento Sul, e tenho a impressão de que isso não foi nada demorado.
     Ao chegar lá, o Vento Oeste perguntou ao Vento Sul se sabia o caminho para o castelo que ficava a leste do sol e a oeste da lua, pois a menina que trazia estava destinada ao príncipe que lá morava. "É mesmo?" disse o Vento Sul. "Então é esta? Bem, já visitei muitos lugares, mas até hoje nunca soprei lá. Se quiser, levo-a até meu irmão, o Vento Norte; ele é o mais velho e o mais poderoso de todos nós. Se ele não souber onde é, você nunca encontrará no mundo quem saiba. Monte nas minhas costas, e eu a levarei lá." Sim, ela montou nas costas dele e os dois partiram numa lufada.
     Não precisaram ir muito longe. O Vento Norte estava tão furioso e rabugento que, quando ainda estavam longe da sua casa, ele soprou vários pés de vento em cima deles. "Que um vendaval os carregue! O que querem?" bramiu a distância, e os dois tiveram um calafrio. "Bem", disse o Vento Sul, "não precisa esbravejar tão alto, pois sou eu, seu irmão, o Vento Sul, e aqui está a menina destinada ao príncipe que mora no castelo que fica a leste do sol e a oeste da lua. Ela quer saber se alguma vez esteve lá e se pode lhe mostrar o caminho, pois quer muito se reencontrar com o príncipe."

Fonte: http://raosyth.com/blog/?p=576

     "Sim, sei onde é", respondeu o Vento Norte. "Uma vez soprei uma folha de choupo por aquelas bandas, mas depois fiquei tão cansado que por vários dias não consegui soprar um só furacão. Se quer mesmo ir lá e não tem medo de vir comigo, eu a levarei nas minhas costas e verei se consigo soprá-la até lá." Sim, do fundo do coração, ela desejava ir e tinha de chegar lá, se fosse possível. E não teria medo, por mais turbulenta que fosse a viagem. "Muito bem, então", disse o Vento Norte. "Mas terá de dormir aqui esta noite, pois vamos precisar de um dia inteiro se quisermos chegar lá de alguma maneira."
     Cedo na manhã seguinte o Vento Norte acordou a menina. Ele se inflara tanto, tornara-se tão forte e grande que ficou horripilante. Partiram os dois, lá em cima no ar, como se não pudessem parar até chegar ao fim do mundo.
     Aqui na terra houve uma terrível tempestade. Alqueires de floresta e muitas casas ficaram inundados. Navios naufragaram às centenas quando a tempestade foi arrastada para o mar. Os dois sopraram sobre o oceano - ninguém pode imaginar o quanto foram longe - e sobre ele ficaram todo o tempo. O Vento Norte foi ficando cada vez mais cansado. Logo estava tão esbaforido que mal lhe sobrava um sopro. Suas asas tombavam cada vez mais, até que por fim ele mergulhou tão fundo que as cristas das ondas molharam os seus calcanhares. "Está com medo?" perguntou o Vento Norte. Não, não estava.
     Não estavam muito longe da terra firme agora, e só restou ao Vento Norte força suficiente para jogá-la no litoral sob as janelas de um castelo que ficava a leste do sol e a oeste da lua. Mas ele estava tão fraco e exausto que teve de ficar ali e descansar por vários dias antes de poder voltar para casa.
     Na manhã seguinte a menina sentou-se sob a janela do castelo e começou a brincar com a maçã de ouro. A primeira pessoa que viu foi a princesa do nariz comprido que iria se casar com o príncipe. "O que quer por sua maçã de ouro, menina?" perguntou a princesa do nariz comprido quando abriu a janela.
     "Não está à venda, nem por ouro nem por dinheiro" respondeu a menina.
     "Se não está à venda nem por ouro nem por dinheiro, o que quer para vendê-la? Pode dizer o preço você mesma", disse a princesa.
     "Bem, poderá tê-la se eu puder passar a noite no quarto onde o príncipe dorme", disse a menina que o Vento Norte transportara. Sim, ela podia dar um jeito. Então a princesa pegou a maçã de ouro; mas quando a menina subiu ao quarto do príncipe naquela noite, encontrou-o profundamente adormecido. Chamou seu nome e sacudiu, chorou e se afligiu, mas não conseguiu acordá-lo. Na manhã seguinte, ao nascer do sol, a princesa do nariz comprido entrou no quarto e a escorraçou.
     Durante o dia, a menina ficou sentado sob a janela do castelo e começou a se pentear com seu pente de ouro, e a mesma coisa aconteceu. A princesa lhe perguntou quanto queria pelo pente. Ela disse que o pente não estava à venda, nem por ouro nem por dinheiro, mas se tivesse permissão para ir ao encontro do príncipe e passar com ele aquela noite, a princesa poderia ficar com o pente. Quando chegou ao quarto do príncipe, a menina viu que ele estava de novo profundamente adormecido. Por mais que chamasse, sacudisse, chorasse e rezasse, não conseguiu fazê-lo reagir. Ao raiar do dia a princesa do nariz comprido apareceu e a escorraçou de novo.
     Durante o dia, a princesa ficou sentada sob a janela do castelo e começou a fiar com sua roda de fiar de ouro. A  princesa do nariz comprido quis ter a roda também. Abriu a janela e perguntou à menina quanto queria por ela. A menina disse, como dissera duas vezes antes, que a roda não estava à venda nem por ouro nem por dinheiro, mas se pudesse ir ver o príncipe que estava lá e passar com ele aquela noite, a princesa poderia ficar com ela. Sim, poderia entrar, seria muito bem-vinda. Mas agora vocês precisam saber que havia pessoas de bom coração hospedadas no castelo, e quando estavam no seu quarto, que era pregado ao do príncipe, haviam ouvido uma mulher chorando, rezando e chamando pelo príncipe por duas noites seguidas. E tinham contado isso ao príncipe.
     Naquela noite a princesa foi ao quarto do príncipe levando-lhe uma poção, mas ele só fingiu tomá-la. Jogou-a sobre o ombro, pois tinha descoberto que era uma poção para dormir. Quando a menina entrou, encontrou o príncipe inteiramente desperto, e então lhe contou toda a história de como chegara ao castelo. "Ah", disse o príncipe, "você chegou na hora certa, porque amanhã seria o dia do meu casamento. Mas agora não terei de me casar com o nariz comprido. Você é a única mulher no mundo que pode me libertar. Vou dizer que quero pôr minha noiva à prova, para ver se é adequada para ser minha mulher. Vou pedir a ela que lave a camisa que tem as três manchas de cera. Ela tentará, pois não sabe que foi você que pingou a cera na camisa e que ela só pode ser lavada por aquela que a manchou, não pelos trolls, mesmo os mais sagazes destas redondezas. Depois direi a ela que só posso me casar com a pessoa capaz de deixar a camisa limpa, e sei que você pode fazer isso."
     Durante a noite toda eles conversaram sobre sua alegria e seu amor. No dia seguinte, quase na hora do casamento, o príncipe disse: "Antes de mais nada, quero ver o que minha noiva é capaz de fazer."
     "Sim!" disse a madrasta, com muita espontaneidade.
     "Bem," disse o príncipe, "tenho uma bela camisa que gostaria de usar no meu casamento. Mas, por alguma razão, ela está com três manchas de cera que precisam ser removidas. Jurei desposar a mulher que conseguir limpá-la. Não vale a pena ter uma que não consiga."
     Bem, não era nenhum grande desafio, elas disseram, e concordaram com o pacto. A princesa do nariz comprido começou a esfregar com toda a força que tinha, mas quanto mais raspava e friccionava, maiores ficavam as manchas. "Ah!" disse a velha troll, sua mãe. "Você não sabe lavar. Deixe-me tentar." Assim que ela a tocou, a camisa ficou pior que antes. Por mais que esfregasse, torcesse e escovasse, as manchas iam ficando maiores e mais escuras, e a camisa, cada vez mais suja e feia. Depois todos os outros trolls começaram a esfregar, mas quanto mais lavavam, mais escura e feia ficava a camisa, até que finalmente ficou tão preta como se tivesse saído de dentro de uma chaminé.
     "Ah!" disse o príncipe. "Nenhuma de vocês vale um vintém; não sabem lavar. Ora, lá fora tem uma mendiga. Aposto que aquela menina sabe lavar melhor que todas vocês. Entre aqui moça!" ele gritou. Ela entrou. "Você é capaz de deixar esta camisa perfeitamente limpa, moça?" ele perguntou.
     "Não tenho certeza", ela respondeu, "mas acho que posso." Mal ela pegou a camisa e a mergulhou na água, ela ficou branca como a neve, até mais branca. "Sim, você é a moça destinada para mim", disse o príncipe.
     Diante disso, a velha bruxa teve um tal ataque de raiva que explodiu ali mesmo e, logo depois dela, a princesa do nariz comprido e, depois da princesa, toda a cambada de trolls. Ou pelo menos eu nunca mais ouvi falar deles.
     Quanto ao príncipe e à princesa, libertara todas as pessoas boas que haviam sido levadas para lá e aprisionadas; e carregaram toda a prata e todo o ouro. E partiram a toda pressa para o mais longe possível do castelo que fica a leste do sol e a oeste da lua.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

#FicaDica

     Boa noite aos nossos amigos leitores. Hoje quero compartilhar uma dica importante com vocês. Eu sei que estamos cansados de ouvir dica relacionadas à autoexames, principalmente aos de mama, mas vocês já sabem fazer o autoexame da pele para prevenir o câncer (melanoma) na região?  O melanoma é responsável pela pigmentação da pele. É sempre bom lembrarmos como realizar o procedimento, pois quando detectada logo no começo a doença tem grandes chances de tratamento e cura.

Fonte: https://www1.ghc.org/html/public/specialties/cancer/melanoma-diagnosis.html

     Meninas e meninos, o teste é fácil e rápido de ser realizado. Se você não quiser fazer sozinha (o), peça para alguém  te ajudar. Mas, afinal, como eu realizo o autoexame?
     Primeiramente devemos nos colocar em frente a um espelho e examinar todo a região facial (incluindo pescoço, orelhas, nariz e lábios). Depois disto, vamos olhar todo o corpo, começando pela parte da frente e, depois, partindo para a parte das costas, além dos lados direito e esquerdo. Não se esqueça de dobrar os cotovelos para observar a área e nas mãos, devemos olhar também a área entre os dedos e debaixo das unhas. Lembre-se: antebraços, braços e axilas devem ser olhados cuidadosamente. E para nós meninas, sempre levantar os seis e examinar toda a área.
     Devemos tomar o mesmo cuidado com a área das pernas (frente, costas e lados) e a região genital. Assim como nossas mãos, os pés devem ser olhados, incluindo a planta, o peito e os espaços entre os dedos. O exame do couro cabeludo pode ser feito com a ajuda de um espelho e uma escova de cabelos ou com a ajuda de outra pessoa, assim como as nádegas e as costas.
     Caso encontrar algo diferente ou suspeito, procure imediatamente seu dermatologista, assim o mesmo pode fazer um exame mais meticuloso e, em caso de um melanoma, realizar o tratamento adequado.

     Gostou da dica? Deixe seu comentário, sugestão ou crítica.


segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Vasilisa, a Bela

Hoje eu quero compartilhar a história de Vasilisa, a Bela, de Aleksandr Afanasev, extraída do livro Contos de Fadas (edição, introdução e notas Maria Tatar; tradução Maria Luiza X. de A. Borges - 1. ed. com. e il. - Rio de Janeiro: Zahar, 2013. pag. 186-198).

Vasilisa, a Bela
Aleksandr Afanasev

     Era uma vez um rico negociante que vivia num reino distante. Embora tivesse sido casado por doze anos, tinha só uma filha, e ela era chamada Vasilisa, a Bela. Quando Vasilisa tinha oito anos, sua mãe adoeceu. Chamou a filha para junto de si, tirou uma boneca de debaixo da coberta e deu-a à menina, dizendo: "Ouça, Vasilisuchka. Preste atenção às minhas últimas palavras e lembre-se do que vou lhe dizer. Estou morrendo e tudo que posso deixar para você é minha bênção de mãe, com esta boneca. Leve a boneca aonde quer que você vá, mas não a mostre a ninguém. Se estiver em apuros, basta lhe dar um pouco de comida e aguardar seu conselho. Depois de comer, ela lhe dirá o que fazer." A mãe deu na filha um beijo de despedida e morreu.
     Após a morte da mulher, o negociante cumpriu o luto de maneira adequada e começou então a pensar em se casar de novo. Era um homem bonitão e não lhe era nada difícil encontrar noiva, mas preferiu uma certa viúva. Essa viúva tinha duas filhas quase da mesma idade de Vasilisa, e o negociante achou que ela daria uma boa dona de casa e uma boa mãe. Assim casou-se com ela, mas estava errado, pois a mulher não se revelou boa mãe para Vasilisa.
     Vasilisa era a menina mais bonita de toda a aldeia, e a madrasta e as irmãs postiças tinham inveja de sua beleza. Atormentavam-na, dando-lhe todo tipo de trabalho para fazer, na esperança de que ficasse esquelética de tanto mourejar e com a pele queimada e gretada pela exposição ao vento e ao sol. E, de fato, Vasilisa levava uma vida desgraçada. Mas suportava tudo sem queixas e tornava-se mais encantadora a cada dia, enquanto a madrasta e as irmãs, que passavam o dia inteiro sentadas aqui e ali sem fazer nada, iam ficando chupadas e feias por causa da sua maldade.
     Como foi que tudo isso aconteceu? As coisas teriam sido diferentes sem a boneca. Sem a ajuda dela a menina nunca teria dado conta de tanto trabalho. Havia alguns dias que Vasilisa não comia nada de nada. Esperava até que todos estivessem na cama e então se trancava no quarto onde dormia. Dando à boneca um gostosa petisco, dizia: "Coma isto, bonequinha, e ouça meus infortúnios. Moro na casa de meu pai, mas estou privada de alegria. Essa minha madrasta vai ser a minha morte. Diga-me como eu deveria viver e o que deveria Fazer." Primeiro a boneca comia, depois aconselhava Vasilisa e a consolava em seu sofrimento. De manhã, ela cuidava de todos os serviços enquanto Vasilisa descansava na sombra e colhia flores. A boneca arrancava as ervas daninhas dos canteiros, regava os repolhos, ia buscar água no poço e acendia o fogão. Chegou a mostrar a Vasilisa uma erva que a protegeria contra queimaduras de sol. Graças à boneca, a vida de Vasilisa era fácil.
    Os anos se passaram e Vasilisa cresceu, chegando à idade de se casar. Todos os rapazes da aldeia queriam se casar com ela, e não davam nem uma olhadinha para as filhas da madrasta. A madrasta passou a detestar Vasilisa ainda mais. Declarava a todos os pretendentes: "Não pretendo casar a caçula antes das mais velhas." Depois descarregava sua raiva dando bofetadas cruéis em Vasilisa.
     Um dia o pai de Vasilisa teve de partir para terras distantes numa longa viagem de negócios. A madrasta mudou-se para uma casa à beira de uma densa floresta. Numa clareira dessa floresta havia uma choupana, e na choupana morava Baba Iaga, que nunca permitia a ninguém chegar perto dela e comia pessoas como se fossem frangos. A mulher do negociante tinha tal ódio de Vasilisa que, na nova casa, costumava mandar a enteada entrar na mata para buscar uma coisa ou outra. Mas Vasilisa sempre voltava sã e salva. Sua boneca lhe mostrava o caminho e a mantinha longe da choupana de Baba Iaga.
     Numa noite de outono a madrasta deu um serviço para cada uma das filhas. Disse à mais velha para fazer renda, mandou a segunda cerzir meias e Vasilisa, fiar. Depois apagou todas as velas da casa, menos a que estava no quarto onde as meninas trabalhavam. Por algum tempo elas executaram suas tarefas tranquilamente. Depois a vela começou a fumegar. Uma das irmãs postiças pegou uma tesoura e fingiu aparar o pavio, mas o que de fato fez, seguindo as ordens da mãe, foi apagar a vela, como se por acidente.
     "E agora, o que vamos fazer?" disseram as irmãs postiças. "Não há luz na casa, e não estamos nem perto de terminar nossos serviços. Alguém tem de correr à casa de Baba Iaga para buscar fogo."
     "Eu não vou", disse a moça que estava fazendo rendo, "pois consigo ver com a luz de meus bilros."
     "Eu não vou", disse a moça que estava cerzindo meias, "pois consigo ver com a luz de minhas agulhas de tricô."
     "Isso significa que você tem de ir", ambas gritaram para a irmã postiça. "Depressa! Vá visitar sua amiga Baba Iaga!" E empurraram Vasilisa porta afora.
     Vasilisa foi para o seu quartinho, arrumou a ceia que preparara para sua boneca, e disse: "Vamos, bonequinha, coma e me ajude na minha aflição. Elas querem que eu vá buscar fogo na casa de Baba Iaga, e ela vai me comer." A boneca ceou. Seus olhos reluziam como duas velas. "Não tenha medo, Vasilisuchka", ela disse. "Vá aonde a mandam ir. Só não esqueça de me levar com você. Se eu estiver no seu bolso, Baba Iaga não poderá lhe fazer mal."
     Vasilisa preparou-se para sair, pôs a boneca no bolso e fez o sinal da cruz antes de partir para a espessa floresta. Tremia de medo ao caminha pela mata. De repente um cavaleiro passou a galope por ela. Seu rosto era branco, estava vestido de branco e montava um cavalo branco com rédeas e estribos brancos. Depois disso, tudo começou a clarear.

Fonte: https://fairytalelandstories.wordpress.com/2013/07/19/baba-yaga-e-vasilisa-a-bela-de-alexander-afanasyev/

     Vasilisa penetrou ainda mais na floresta, e um segundo cavaleiro passou a galope por ela. Seu rosto era vermelho, estava vestido de vermelho, e montava um cavalo vermelho.  Depois o sol começou a despontar.

Fonte: https://fairytalelandstories.wordpress.com/2013/07/19/baba-yaga-e-vasilisa-a-bela-de-alexander-afanasyev/

     Vasilisa andou a noite inteira e o dia inteiro. Tarde na segunda noite, chegou à clareira onde ficava a choupana de Baba Iaga. A cerca em torno dela era feita de ossos humanos. Caveiras, com buracos no lugar dos olhos, miravam das estacas. O portão era feito com ossos de perna humana; os ferrolhos eram feitos de mãos humanas; e o cadeado era um maxilar com dentes afiados. Apavorada, Vasilisa ficou pregada no lugar.
     De repente mais um cavaleiro passou a galope por ela. Seu rosto era negro, estava vestido de negro e montava um cavalo negro. Ele galopou até a porta de Baba Iaga e desapareceu, como se a terra o tivesse engolido. Depois caiu a noite. Mas não ficou escuro por muito tempo. Os olhos de todas as caveiras começaram a brilhar, e a clareira ficou iluminada como o dia. Vasilisa arrepiou-se de terror. Queria fugir dali, mas não sabia para que lado ir.

Fonte: https://fairytalelandstories.wordpress.com/2013/07/19/baba-yaga-e-vasilisa-a-bela-de-alexander-afanasyev/

     Fez-se um barulho medonho na mata. As árvores estalaram e gemeram. As folhas secas farfalharam e chiaram. Baba Iaga apareceu, voando num almofariz que esporeava com seu pilão e varrendo seus rastros com uma vassoura. Avançou até o portão, parou e farejou o ar à sua volta. "Fum, fum! Este lugar está cheirando a menina russa! Quem está aí?"
     Tremendo de medo, Vasilisa aproximou-se da velha bruxa, fez uma profunda reverência e disse: "Sou eu, vovó. Minhas irmãs postiças me mandaram buscar fogo."
     "Pois não", disse Baba Iaga. "Conheço suas irmãs muito bem. Mas antes de eu lhe dar fogo você deve ficar aqui e trabalhar para mim. Senão, vou comê-la no jantar." Em seguida virou-se para o portão e gritou: "Desaferrolhai-vos, meu fortes ferrolhos! Abri-vos, meus largos portões!" Os portões se abriram e Baba Iaga entrou, conduzindo seu almofariz com um assobio estridente. Vasilisa seguia-a e depois tudo voltou a se fechar.
     Baba Iaga entrou na choupana, estirou-se num banco e disse a Vasilisa: "Estou com fome. Traga-me o que estiver no forno!" Vasilisa foi acender uma vela nas caveiras na cerca e começou a servir Baba Iaga a comida tirada do forno. Havia o bastante para alimentar dez pessoas. Trouxe kvas, hidromel, cerveja e vinho da adega. A velha comeu e bebeu tudo que foi posto diante dela. só deixando para Vasilisa uma tigela de sopa de repolho, uma crosta de pão e uma sobra de porco.
     Baba Iaga preparou-se para dormir e disse: "Amanhã, depois que eu sair, trate de varrer o quintal, limpar a choupana, fazer o jantar, lavar a roupa e ir até a tulha catar um alqueire de trigo. E se não tiver terminado quando eu voltar, como você!" Depois de dar as ordens, Baba Iaga pôs-se a roncar. Vasilisa tiro a boneca do bolso e pôs os restos da comida de Baba Iaga diante dela. "Pronto, boneca, coma um pouco e me ajude! Baba Iaga deu-me tarefas impossíveis e ameaçou me comer se eu não cuidar de tudo. Ajude-me."
     A boneca respondeu: "Não tenha medo, Vasilisa, a Bela! Jante, faça suas preces e vá dormir. Uma noite bem-dormida é o melhor conselheiro."
     Vasilisa levantou cedo. Baba Iaga já estava de pé, andando de um lado para outro. Quando Vasilisa olhou pela janela, viu que as luzes nos olhos das caveiras estavam se apagando. Então o cavaleiro branco passou por ali galopando e o dia rompeu. Baba Iaga foi até o quintal e deu um assobio. Seu almofariz, pilão e vassoura apareceram. O cavaleiro vermelho passou por ali como um relâmpago e o sol despontou. Baba Iaga sentou-se em seu almofariz, esporeou-o com seu pilão e saiu varrendo seus rastros com a vassoura.

Fonte: https://storybooksandustyattics.wordpress.com/2012/02/25/vasilisa-a-bela/

     Sozinha, Vasilisa correu os olhos pela choupana de Baba Iaga. Nunca tivera tantas coisas para fazer em sua vida e não conseguia decidir por onde começar. Mas, vejam só, o trabalho já estava todo feito! A boneca estava catando os últimos pedacinhos de palha do trigo. "Você me salvou!" Vasilisa disse à boneca. "Se não fosse por você, eu seria devorada esta noite."
     "Agora tudo que tem a fazer é preparar o jantar", disse a boneca enquanto subia para o bolso da menina. "Trate de cozinhá-lo com a bênção de Deus e depois descanse um pouco para ficar forte."
     Ao pôr do sol Vasiilisa arrumou a mesa e esperou por Baba Iaga. Escureceu e, quando o cavaleiro negro passou galopando, a noite caiu. A única luz vinha das caveiras na cerca. As árvores estalaram e gemeram; as folhas secas farfalharam e chiaram. Baba Iaga estava chegando. Vasilisa saiu ao seu encontro. "Todo o serviço foi feito?" Baba Iaga perguntou. "Veja com seus próprios olhos, vovó", Vasilisa respondeu.
     Baba Iaga percorreu toda a choupana. Ficou aborrecida por não ter nada do que se queixar, e disse: "Muito bem." Em seguida grito: "Minhas servidoras fieis, minhas amigas queridas, moei o trigo!" Três pares de mãos apareceram. Pegaram o trigo e desapareceram com ele. Baba Iaga comeu até se fartar, aprontou-se para dormir e mais uma vez deu tarefas para Vasilisa. "Amanhã", ordenou, "faça exatamente como hoje. Depois tire as sementes de papoula da tulha e espane a poeira, grão por grão. Alguém jogou poeira nas tulhas só para me aborrecer." Baba Iaga se virou e se pôs a roncar.
     Vasilisa foi dar comida para sua boneca, que comeu tudo na sua frente e repetiu as mesmas palavras que dissera no dia anterior. "Reze a Deus e vá dormir. Tudo será feito, Vasilisuchka."
     Na manhã seguinte Baba Iaga partiu outra vez em seu almofariz. Com a ajuda da boneca, Vasilisa terminou o serviço num piscar de olhos. A bruxa velha retornou ao entardecer, examinou tudo e exclamou: "Minhas servidoras fieis, minhas amigas queridas, espremei o óleo destas sementes de papoula." Três pares de mãos apareceram, pegaram o caixote de sementes de papoula e desapareceram com ele. Baba Iaga sentou-se para jantar. Enquanto comia, Vasilisa permaneceu em silêncio perto dela.
     "Por que não fala comigo?" Baba Iaga perguntou. "Fica aí como se fosse muda."
     "Não me atrevo a falar", disse Vasilisa, "mas se me der permissão, há lago que gostaria de perguntar."
     "Pergunte à vontade!" disse Baba Iaga. "Mas tome cuidado. Nem toda pergunta tem uma boa resposta. Se souber muito, ficará velha logo."
     "Oh, vovó. só quero perguntar sobre algumas coisas que vi no caminho para cá. Quando estava vindo para cá, um cavaleiro com o rosto branco, montando um cavalo branco e vestido de branco me alcançou. Quem era ele?"
     "Aquele era o dia claro", Baba Iaga respondeu.
     "Depois um outro cavaleiro me alcançou. Tinha um rosto vermelho, montava um cavalo vermelho e estava vestido de vermelho. Quem era ele?"
     "Aquele é meu sol vermelho", Baba Iaga respondeu.
     "Então quem era o cavaleiro negro que encontrei junto o seu portão, vovó?"
     "É a minha noite escura. Todos os três são meus fiéis servidores."
     Vasilisa lembrou-se dos três pares de mãos, mas ficou de boca calada.
     "Não quer perguntar mais nada?" indagou Baba Iaga.
     "Não, vovó, isto é o bastante. Você mesma disse que quanto mais se sabe, mais depressa se envelhece."
     "Você é bem ajuizada", disse Baba Iaga, "perguntando só sobre coisas que viu fora da minha casa, não dentro dela. Não gosto que saibam dos meus assuntos, e quando as pessoas ficam curiosas demais, eu as devoro. Agora tenho uma pergunta para você. Como conseguiu fazer todo o trabalho tão depressa?"
     "Fui ajudada pela bênção de minha mãe", disse Vasilisa.
     "Ah, então foi assim!" Baba Iaga deu um grito estridente. "Fora daqui, filha abençoada! Não quero ninguém abençoado na minha casa." Arrastou Vasilisa para fora do quarto e a empurrou portão afora. Depois pegou uma das caveiras de olhos flamejantes da cerca, espetou-a na ponta de uma vara e deu-a à menina, dizendo:
     "Aqui tem fogo para suas irmãs postiças. Tome-o. Foi isto que veio buscar, não foi?"
     Vasilisa correu para casa, usando o fogo da caveira para iluminar o caminho. Ao alvorecer o fogo se extinguiu e ao anoitecer ela chegou em casa. Quando estava se aproximando do portão, quase jogou a caveira fora achando que àquela hora suas irmãs postiças já tinham arranjado fogo, mas ouviu uma voz abafada vindo da caveira: "Não me jogue fora. Leve-me para sua madrasta." ela olhou para a casa da madrasta e, vendo que não havia nenhuma luz na janela, resolveu entrar com a caveira. Pela primeira vez a madrasta e as irmãs postiças a receberam gentilmente. Contaram-lhe que, desde a partida dela, não tinham tido nenhum fogo em casa. Não tinham conseguido acender nenhuma vela sozinhas. Tinham tentado trazer uma acesa da casa dos vizinhos, mas ela se apagava assim que transpunha a soleira.

Fonte: http://vikaatelier.blogspot.com.br/2010_05_01_archive.html

     "Talvez seu fogo dure", disse a madrasta. Vasilisa entrou em casa com a caveira, cujos olhos começaram a fitar a madrasta e as duas irmãs. Aquele olhar começou a queimá-las. Tentaram se esconder, mas os olhos as seguiam aonde quer que fossem. Pela manhã estavam transformadas em três montinhos de cinzas no chão. Só Vasilisa permaneceu intocada pelo fogo.
     A menina enterrou a caveira no jardim, trancou a casa e foi para a cidade mais próxima. Uma velha senhora sem filhos deu-lhe abrigo e ali ela ficou morando, esperando a volta do pai. Um dia disse à mulher: "Estou cansada de ficar aqui sem nada para fazer, vovó. Compre para mim o melhor linho que achar. Assim pelo menos posso fiar um pouco."
     A velha senhora comprou do melhor linho das redondezas e Vasilisa pôs-se a trabalhar. Fiava com a rapidez de um raio, e seus fios eram uniformes e finos como cabelo. Fiou uma grande quantidade de fio. Estava na hora de começar a tecê-lo, mas não havia pentes finos o bastante para o fio de Vasilisa e ninguém se dispunha a fabricar um. Vasilisa pediu ajuda à boneca. A boneca disse: "Traga-me um pente velho, uma lançadeira velha e uma crina de cavalo. Farei um tear para você." Vasilisa fez o que a boneca disse, foi dormir e na manhã seguinte encontrou um maravilhoso tear à sua espera.
     Antes que o inverno terminasse o linho estava tecido. Era tão fino que passava pelo buraco de uma agulha. Na primavera o linho foi alvejado, e Vasilisa disse à velha senhora: "Vovó, venda este linho e guarde o dinheiro para você."
     A velha senhora contemplou o tecido e perdeu a respiração. "Não, minha filha. Ninguém pode usar um linho como este a não ser o czar. Vou levá-lo para o palácio."
     A velha senhora foi até o palácio do czar e começou a andar para lá e para cá sob as janelas. O czar a viu e perguntou: "O que você que, vovó?"
     "Vossa majestade," ela respondeu, "trouxe uma mercadoria rara. Não quero mostrá-la a ninguém senão a vós."
     O czar ordenou que levassem a velha senhora à sua presença e, quando ela lhe mostrou o linho, ele o admirou assombrado. "O que quereis por ele?" perguntou.
     "Não posso cobrar nenhum preço por ele, paizinho czar! É um presente." O czar agradeceu e cobriu-a de mimos.
     O czar mandou que fossem feitas camisas do linho. Elas foram cortadas, mas ninguém conseguiu encontrar uma costureira disposta a costurá-las. Por fim ele convocou a velha senhora e disse: "Você foi capaz de fiar e tecer este linho. Deve ser capaz de costurar camisas com ele para mim."
     "Não fui eu quem fiou e teceu este linho, Vossa Majestade", disse a mulher. "Isto é obra de uma moça a quem dei abrigo."
     "Muito bem, então que ela costure as camisas", o czar ordenou.
     A velha senhora voltou para casa e contou tudo a Vasilisa. "Eu sabia o tempo todo que teria de fazer esse trabalho", Vasilisa lhe disse. E, trancando-s em seu quarto, pôs-se a costurar. Trabalhou sem parar e logo uma dúzia de camisas estava pronta.
     A velha senhora levou as camisas ao czar. Vasilisa se banhou, penteou o cabelo, vestiu suas melhores roupas e se sentou junto à janela para ver o que aconteceria. Viu um dos servos do czar entrar no pátio. O mensageiro foi até a sala e disse: "Sua Majestade que conhecer a costureira que fez suas camisas e recompensá-la com suas próprias mãos."
     A menina compareceu perante o czar. Quando ele viu Vasilisa, a Bela, apaixonou-se perdidamente. "Não, minha bela", disse. "Nunca a deixarei. Será minha esposa."
     O czar tomou as belas mãos brancas de Vasilisa e a fez sentar-se ao seu lado. O casamento foi celebrado imediatamente. Logo depois o pai de Vasilisa regressou. Ficou radiante com a boa fortuna da filha e foi morar na casa dela. Vasilisa levou também a velha senhora para sua casa e carregou a boneca no bolso até o dia da sua morte.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

O Pé de Zimbro

Hoje eu quero compartilhar a história de O Pé de Zimbro, de Philipp Otto Runge, extraída do livro Contos de Fadas (edição, introdução e notas Maria Tatar; tradução Maria Luiza X. de A. Borges - 1. ed. com. e il. - Rio de Janeiro: Zahar, 2013. pag. 173-185).

O Pé de Zimbro
Philipp Otto Runge

     Muito tempo atrás, nada menos que dois mil anos, havia um homem rico casado com uma mulher bonita e piedosa. Eles se amavam muito, mas não tinham filhos, por mais que os desejassem. Dia e noite a mulher rezava pedindo um filho, mas apesar disso nada conseguiam.
     Diante da casa havia um jardim, e no jardim crescia um pé de zimbro. Uma vez, durante o inverno, a mulher estava descascando uma maçã debaixo da árvore, e enquanto a descascava cotou o dedo. O sangue pingou na neve. "Ah", disse a mulher, suspirando fundo. "Se pelo menos eu tivesse uma criança vermelha como o sangue e branca como a neve!" Depois de dizer essas palavras, começo a se sentir melhor, pois teve a impressão de que elas iriam resultar em alguma coisa. E voltou para casa.
     Um mês se passou, e a neve derreteu. Dois meses se passaram, tudo se tornara verde. Três meses se passaram, e as flores estavam brotando do chão. Quatro meses se passaram, e as árvores na mata estavam crescendo, seus galhos verdes se entrelaçando. A mata ressoava com o canto dos pássaros e flores caíam das árvores. E assim o quinto mês passou, E quando a mulher se sentava debaixo do pé de zimbro, seu coração saltava de alegria, tão perfumada a árvore estava. Ela caía de joelhos e não cabia em si de felicidade. Depois que o sexto mês se passou, o fruto ficou grande e firme e ela ficou muito sossegada. No sétimo mês ela colheu as bagas do zimbro e se deliciou com elas até ficar se sentindo muito mal e doente. Depois que o oitavo mês se passou, ela chamou o marido e lhe disse: "Se eu morrer, enterre-me debaixo do zimbro." Depois disso, sentiu-se melhor e ficou tranquila até que o nono mês passou. Então deu à luz uma criança branca como a neve e vermelha como o sangue. Quando viu o filho, ficou tão feliz que morreu de alegria.
     O marido a enterrou debaixo do pé de zimbro e chorou dia após dia. Depois de algum tempo sentiu-se melhor, mas ainda chorava de vez em quando. Finalmente parou de chorar e se casou pela segunda vez.
     Teve uma filha com a segunda mulher. A criança do primeiro casamento fora um menininho, vermelho como o sangue e branco como a neve. Sempre que olhava para sua filha, a mulher sentia amor por ela, mas sempre que olhava para o menino, ficava infeliz. Parecia-lhe que, onde quer que fosse, ele estava sempre no caminho, e ela não parava de pensar em garantir que, no fim das contas, sua filha herdasse tudo. O demônio se apossou de tal maneira da mulher que ela começou a odiar o menino, dando-lhe palmadas a torto e a direito, beliscando-o aqui e soltando um sopapo ali. O pobre menino vivia aterrorizado, e quando voltava para casa depois da escola não tinha um minuto de paz.
     Um dia a mulher entrou na despensa. Sua filhinha foi atrás e perguntou: "Mãe, me dá uma maçã?"
     "Mas é claro, minha filha", disse a mulher. Abriu uma arca de tampa grande e pesada, trancada com um cadeado de ferro, tirou uma bonita maçã e entregou-a à menina.
     "Mãe," perguntou a menininha, "o Irmão pode ganhar uma também?"
     A mulher ficou irritada, mas respondeu: "Pode. Ele pode ganhar uma quando voltar da escola."
     A mulher olhou então pela janela e viu o menino voltando para casa. Como se estivesse possuída pelo diabo, arrancou a maçã da mão da filha e disse: "Você não pode ganhar uma antes do seu irmão." Jogou a maçã na arca e trancou-a.
     O menino entrou e o demônio fez a mulher sussurrar para ele, docemente: "Meu filho, gostaria de uma maçã?" Mas lançou-lhe um olhar cheio de ódio.
     "Mãe," disse o menino, "que olhar assustador! Sim, me dê uma maçã."
     A mulher teve a sensação de que alguém a obrigava a dizer: "Venha comigo."
     Quando o menino se curvou, o diabo a instigou, e bam! Ela bateu a tampa com tanta força que a cabeça do menino caiu dentro da arca com as maçãs. Então, tomada pelo medo, pensou: "Como vou sair desta?" Foi até seu quarto e pegou um lenço branco na gaveta da cômoda. Pôs a cabeça do menino de volta sobre o pescoço e amarrou o lenço em volta, de modo que parecia não haver nada de errado. Depois o sentou numa cadeiro diante da porta e pôs uma maçã na sua mão.

Fonte: http://pensesonheviva.blogspot.com.br/2013/05/o-pe-de-zimbro.html

     Mais tarde a pequena Marlene foi à cozinha à procura da mãe e encontrou-a de pé junto ao fogo, mexendo freneticamente uma panela de água quente. "Mãe", disse a pequena Marlene, "o Irmão está sentado junto à porta e parece pálido. Está com uma maçã na mão e quando lhe pedi que a desse para mim, não respondeu. Fiquei muito assustada."
     "Volte lá", a mãe disse, "e se ele não der resposta, dê-lhe uma bofetada."
     A pequena Marlene foi até lá e disse: "Irmão, dê a maçã para mim."
     O menino não respondeu. Diante disso Marlene lhe deu uma bofetada e a cabeça dele voou pelos ares. Ela ficou tão apavorada que começou a gritar e a chorar. Correu até a mãe e disse: "Mãe, arranquei fora a cabeça do Irmão!" E chorava tanto que não conseguia parar.
     "Marlene", disse a mãe, "que coisa medonha você fez! Mas não diga nada a ninguém, pois não há nada que possamos fazer. Vamos guisá-lo e fazer um ensopado."
     A mãe pegou o menino e fez dele picadinho. Jogou os pedaços numa panela e preparou um ensopado. Marlene ficou junto ao fogo e chorou, mas chorou tanto que as lágrimas caíram na panela e nem foi preciso pôr sal na comida.
     Quando o pai chegou em casa, sentou-se à mesa e perguntou: "Onde está meu filho?"
     A mãe trouxera uma enorme travessa de ensopado, enquanto Marlene chorava, sem conseguir parar.
     "Onde está meu filho?" o pai perguntou de novo.
     "Oh", disse a mãe, "ele viajou, foi visitar o tio-avô da mãe. Está pretendendo passar um tempo por lá."
     "O que ele foi fazer lá? Saiu sem nem me dizer adeus."
     "Bem, ele queria muito ir e perguntou se poderia ficar por seis semanas. Eles cuidarão bem dele."
     "Oh, isto me deixa tão triste", disse o marido. "Não é direito. Devia ter se despedido de mim."
     Depois começou a comer e disse: "Marlene, por que você está chorando? Seu irmão voltará logo." E para a mulher: "Oh, querida esposa, que delícia este ensopado! Quero mais um pouco."
     Quanto mais o pai comia, mais queria. "Quero mais um pouco", disse. "Ninguém mais pode comê-lo. Tenho a impressão de que ele é todo para mim."
     O pai continuou a comer e foi jogando os ossos embaixo da mesa, até que a travessa ficou vazia. Nesse meio tempo, Marlene foi à sua cômoda e pegou seu melhor lenço de seda. Catou todos os ossos que estava no chão, amarrou-os em seu lenço e levou-os para fora. Chorava amargamente. Depositou os ossos no capim verde debaixo do pé de zimbro e, depois de fazer isso, sentiu-se melhor de repente e parou de chorar.
     O zimbro começou a se agitar. Seus galhos se separavam e se juntavam de novo como se estivesse batendo palmas de alegria. Uma névoa se desprendeu da árvore e no meio dela ardia uma chama, e da chama uma bela ave surgiu e se pôs a cantar gloriosamente. Elevou-se no ar e depois desapareceu. A árvore estava como era antes, mas o lenço com os ossos sumira. A pequena Marlene sentiu-se muito feliz e aliviada, porque parecia que o irmão ainda estava vivo. Voltou  contente para casa e se sentou à mesa para comer.

Fonte: http://pensesonheviva.blogspot.com.br/2013/05/o-pe-de-zimbro.html

     Enquanto isso, o pássaro voou para muito longe e se empoleirou no telhado da casa de um ourives. Começou então a cantar:
     "Minha mãe me matou, meu pai me comeu,
     Minha irmã, Marlene, meus ossos recolheu,
     Em seda os envolveu, e sob o zimbro os depositou.
     Bela ave canora agora sou!"
     O ourives estava em sua oficina, fazendo uma corrente de ouro. Ouviu a ave cantando sobre seu telhado e seu canto lhe pareceu muito bonito. Levantou-se e, ao transpor a soleira, perdeu um sapato. Mesmo assim seguiu em frente, indo até o meio da rua de meia e sapato num pé só. Estava também usando seu avental e numa das mãos tinha a corrente de ouro, na outra suas pinças. O sol brilhava na rua. Ele parou para olhar a ave e disse:
     "Ave, seu canto é tão maravilhoso. Cante de novo aquela canção para mim."
     "Não", disse a ave. "Nunca canto uma segunda vez a troco de nada. Dê-me sua corrente de ouro e eu a cantarei de novo para você."
     "Tome", disse o ourives. "Tome minha corrente de ouro. Agora cante aquela canção de novo."
     Mais que depressa, a ave desceu. Pegando a corrente de ouro com a pata direita, empoleirou-se diante do ourives e começou a cantar:
     "Minha mãe me matou, meu pai me comeu,
     Minha irmã, Marlene, meus ossos recolheu,
     Em seda os envolveu, e sob o zimbro os depositou.
     Bela ave canora agora sou!"
     Depois a ave voou até a casa de um sapateiro, empoleirou-se no telhado e cantou:
     "Minha mãe me matou, meu pai me comeu,
     Minha irmã, Marlene, meus ossos recolheu,
     Em seda os envolveu, e sob o zimbro os depositou.
     Bela ave canora agora sou!"
     Quando o sapateiro ouviu a canção, saiu porta afora em mangas de camisa e olhou para o telhado. Teve de proteger os olhos com a mão para impedir que o sol o cegasse. "Ave", disse ele, "seu canto é tão maravilhoso." Depois gritou para dentro de casa: "Mulher, venha cá fora um instante. Há uma ave ali. Está vendo? Que beleza é o seu canto!"
     O sapateiro chamou a filha e os filhos dela, seus aprendizes, os operários, a criada. Todos foram correndo para a rua para ver a ave e admirar sua formosura. Ela tinha plumas vermelhas e verdes e, à volta do pescoço, uma faixa de ouro puro, e seus olhos faiscavam como estrelas.
     "Ave", disse o sapateiro, "cante aquela canção de novo."
     "Não", disse a ave. "Nunca canto uma segunda vez a troco de nada. Você tem de me dar alguma coisa."
     "Mulher", disse o homem, "suba até o sótão. Na prateleira de cima encontrará um par de sapatos vermelhos. Traga-os para mim."
     A mulher foi e trouxe os sapatos.
     "Tome", disse o homem. "Agora cante aquela canção de novo."
     Mais que depressa, a ave desceu. Pegando os sapatos com a pata direita, foi se pôr de novo sobre o telhado e cantou:
     "Minha mãe me matou, meu pai me comeu,
     Minha irmã, Marlene, meus ossos recolheu,
     Em seda os envolveu, e sob o zimbro os depositou.
     Bela ave canora agora sou!"
     Ao terminar a canção, a ave levantou voo. Tinha a corrente na pata direita e os sapatos na esquerda, e voou uma longa distância até um moinho. O moinho rodava, plect plec, plect ploc, plect plec. Lá dentro vinte empregados do moleiro talhavam uma pedra, ric rac, ric rac, ric rac. E o moinho continuava a rodar, plect plec, plect ploc, plect plec. E assim a ave foi se empoleirar numa tília na frente do moinho e cantou:
     "Minha mãe me matou..."
     E um dos homens parou de trabalhar.
     "... meu pai me comeu..."
     E mais dois homens pararam de trabalhar e escutaram.
     "Minha irmã, Marlene..."
     Então quatro homens pararam de trabalhar.
     "... meus ossos recolheu,
     Em seda os envolveu..."
     Agora só oito homens continuavam talhando.
     "... e sob o zimbro..."
     Agora só cinco.
     "... os depositou."
     Agora só um.
     "Bela ave canora agora sou!"
     O último parou para ouvir as palavras finais. "Ave", ele disse, "seu canto é tão maravilhoso! Deixe-me ouvir a canção inteira também. Cante-a de novo."
     "Nunca canto uma segunda vez a troco de nada. Se me der a mó eu canto a canção de novo."
     "Se ela pertencesse a mim somente," ele disse, "seria sua."
     "Se a ave cantar outra vez", disseram os outros, "poderá ter a mó."
     Mais que depressa, a ave desceu, e os empregados do moleiro, todos os vinte, pegaram uma alavanca e levantaram a pedra. Hei hup, hei hup, hei hup. E a ave enfiou o pescoço no buraco da pedra de moinho, ajeitou-a como se fosse um colar, voou de volta para a árvore e cantou:
     "Minha mãe me matou, meu pai me comeu,
     Minha irmã, Marlene, meus ossos recolheu,
     Em seda os envolveu, e sob o zimbro os depositou.
     Bela ave canora agora sou!"
     Ao terminar sua canção, a ave bateu asas e voou. Na pata direita, a corrente, na esquerda os sapatos e no pescoço, a mó. Então voou para longe, muito longe, até a casa do seu pai.
     O pai, a mãe e Marlene estavam sentados à mesa, na sala, e o pai disse: "Como estou feliz! Meu coração parece tão leve."
     "Eu não", disse a mãe. "Estou atormentada como se uma grande tempestade estivesse se armando."
     Enquanto isso, Marlene só ficava ali sentada, chorando. A ave se aproximou e, quando pousou no telhado, o pai disse: "Como estou me sentindo feliz. Lá fora o sol brilha com tanto esplendor! Tenho a impressão de estar prestes a rever um velho amigo."
     "Eu não", disse a mulher. "Estou tão apavorada que meus dentes estão batendo e tenho a impressão de ter fogo correndo nas veias."
     Puxou o corpete para afrouxá-lo um pouco mais, enquanto a pequena Marlene continuava a chorar. Segurava o avental junto aos olhos e chorava tanto que ele estava completamente encharcado de lágrimas. A ave se precipitou sobre o zimbro, empoleirou-se num galho e cantou:
     "Minha mãe me matou..."
     A mãe tapou os ouvidos e fechou os olhos, porque não queria ver nem ouvir nada, mas o ronco em seus ouvidos era como a mais violenta tempestade e seus olhos ardiam e chamejavam como relâmpagos.
     "... meu pai me comeu..."
     "Oh, mãe," disse o homem, "há uma bela ave lá fora e está cantando tão gloriosamente. O sol está tão cálido, e o ar recende a canela."
     "Minha irmã, Marlene..."
     Então Marlene pôs a cabeça no colo e continuou a chorar e chorar. Mas o marido disse: "Vou lá fora. Tenho de ver essa ave de perto."
     "Oh, não vá!" disse a mulher. "Sinto como se a casa inteira estivesse se sacudindo e prestes a arder em chamas!"
     Mas o marido foi lá fora e olhou para a ave.
     "... meus ossos recolheu,
     Em seda os envolveu, e sob o zimbro os depositou.
     Bela ave canora agora sou!"
     Terminada a sua canção, a ave soltou a corrente de ouro, e ela caiu bem em volta do pescoço do homem, assentando-lhe perfeitamente. Ele entrou em casa e disse: "Venham dar uma olhada nessa linda ave ali! Ela me deu esta bonita corrente de ouro, quase tão bonita quanto ela."
     A mulher ficou tão apavorada que caiu imediatamente no chão e a touca que usava saiu da cabeça.
     E mais uma vez a ave cantou:
     "Minha mãe me matou..."
     "Oh, quisera estar mil metros debaixo da terra para não ter de ouvir isso!"
     "... meu pai me comeu..."
     Então a mulher caiu de novo, como morta.
     "Minha irmã, Marlene..."
     "Oh", disse Marlene. "Quero ir lá fora e ver se a ave me dará alguma coisa também." E saiu.
     "...meus ossos recolheu,
     Em seda os envolveu..."
     E a ave jogou-lhe os sapatos.
     "... e sob o zimbro os depositou.
     Bela ave canora agora sou!"
     Marlene sentiu-se feliz, despreocupada. Calçou os novos sapatos vermelhos e saiu dançando e saltitando pela casa.
     "Oh", disse Marlene, "eu estava tão triste quando saí, e agora estou tão alegre. Que bela ave está lá fora. Ela me deu um par de sapatos vermelhos."
     A mulher se levantou de um pulo e seu cabelo ficou arrepiado como línguas de fogo. "Sinto como se o mundo fosse acabar. Se eu for lá fora talvez me sinta melhor também."
     A mulher foi até a porta, e, bam, a ave soltou a pedra de moinho em cima da cabeça dela, que morreu esmagada. O pai e Marlene ouviram o estrondo e saíram. Fumaça, chamas e fogos se erguiam e, quando desapareceram, o Irmãozinho estava de volta, postado bem ali. Ele pegou o pai e Marlene pela mão e os três foram arrebatados pela alegria. Depois voltaram para casa, sentaram-se à mesa e jantaram.

Fonte: http://pensesonheviva.blogspot.com.br/2013/05/o-pe-de-zimbro.html

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Barba Azul

Hoje eu quero compartilhar a história de Barba Azul, de Charles Perrault, extraída do livro Contos de Fadas (edição, introdução e notas Maria Tatar; tradução Maria Luiza X. de A. Borges - 1. ed. com. e il. - Rio de Janeiro: Zahar, 2013. pag. 160-172).

Barba Azul
Charles Perrault

     Era uma vez um homem que possuía casas magníficas, tanto na cidade quanto no campo. Suas baixelas eram de ouro e prata, as cadeiras, estofadas com tapeçarias, as carruagens, recobertas de ouro. Mas, por desgraça, esse homem tinha também a barba azul. A barba o tornava tão feio e terrível que mulheres e moças fugiam quando batiam os olhos nele.
     Uma dama nobre que vivia nas vizinhanças tinha duas filhas que eram verdadeiras beldades. O homem pediu a essa senhora a mão de uma das suas filhas e deixou que ela mesma escolhesse qual das duas lhe daria. Nenhuma das moças quis aceitar a proposta, e ficaram empurrando o pedido de uma para a outra, sem conseguirem se convencer de casar com um homem de barba azul. O que aumentava ainda mais aquela aversão é que o homem de barba azul. O que aumentava ainda mais aquela aversão é que o homem já se casara com várias mulheres e ninguém sabia o que fora feito delas.
    Para criar amizade, Barba Azul levou as moças e a mãe, mais três ou quatro das amigas mais íntimas delas e alguns rapazes da vizinhança, para uma de suas casas de campo. Lá passaram oito dias inteiros. Foi uma sucessão de passeios, caçadas e pescarias, danças, banquetes e ceias. À noite, estavam sempre tão ocupados em pregar peças uns nos outros que nunca dormiam. Enfim, tudo correu tão bem que a irmã caçula começou a pensar que a barba daquele homem não era assim tão azul, e que ele era de fato um perfeito cavalheiro. Assim que voltaram para a cidade, realizou-se o casamento.
     Passado um mês, Barba Azul disse à mulher que tinha de partir em viagem para cuidar de um negócio importante na província. Ficaria fora pelo menos seis semanas. Insistiu que ela se divertisse na sua ausência. Poderia, se quisesse, convidar suas melhores amigas e levá-las para a casa de campo. Que as recebesse sempre muito bem.
     Deu à mulher uma argola com chaves penduradas e disse: "Estas são as chaves dos dois grandes depósitos, aqui estão as das baixelas de ouro e prata que não são de uso diário, estas são as dos meus cofres-fortes, onde guardo meu ouro e minha prata, estas as dos escrínios onde guardo minhas pedrarias, e aqui está a chave mestra de todos os aposentos da casa. Quanto a esta pequenina aqui, é a chave do gabinete na porta da longa galeria do térreo. Abra tudo que quiser. Vá onde bem entender. Mas proíbo-lhe terminantemente de entrar nesse quartinho, e se abrir uma fresta que seja dessa porta nada a protegerá da minha ira."
     A esposa prometeu cumprir exatamente as ordens do marido. Barba Azul lhe deu um beijo de despedida, entrou na carruagem e iniciou sua viagem.
     As vizinhas e as amigas da jovem recém-casada não esperaram convite para ir visitá-la, tal a impaciência delas em ver os esplendores da casa. Não haviam ousado ir lá enquanto o marido estava em casa, assustadas por sua barba azul. Sem perder tempo, começaram a explorar os quartos, gabinetes, guarda-roupas, cada um mais belo e suntuoso que o outro. Depois subiram para ver os depósitos, e ficaram pasmas diante do número e da beleza das tapeçarias, camas, sofás, cristaleiras, mesas de vários formatos. Havia espelhos em que a pessoa podia se ver da cabeça aos pés. alguns espelhos tinham moldura de vidro, outros de prata ou de vermeil, mas todos eram os mais belos e os mais magníficos que já se tinha visto.
     As convidadas não paravam de exagerar e invejar a felicidade da amiga. Esta, no entanto, não estava se divertindo nada em ver todo aquele luxo, pois estava ansiosíssima para abrir o gabinete do térreo. Estava tão atormentada por sua curiosidade que, sem lembrar que era grosseiro abandonar suas amigas, desceu por uma escadinha secreta, e tão depressa que por duas ou três vezes achou que fosse cair. Ao chegar à porta do gabinete, parou por um momento, pensando na proibição do marido e considerando que podia lhe ocorrer uma desgraça caso desobedecesse. Mas a tentação era grande demais. Não pôde resistir a ela e, tremendo, pegou a chavezinha e abriu a porta.
     De início não conseguiu ver coisa alguma, pois as janelas estavam fechadas. Após alguns instantes, começou a perceber que o assoalho estava todo coberto de sangue coagulado, e que naquele sangue se refletiam os cadáveres de várias mulheres mortas e penduradas ao longo das paredes (eram todas as mulheres que Barba Azul desposara e degolara, uma depois da outra).

Fonte: http://vilaclub.vilamulher.com.br/blog/outros/o-barba-azul-trabalhando-a-negacao-da-realidade-9-4751029-102048-pfi-araretamabiojoias.html

     Pensou que ia morrer de pavor e, ao puxar a chave da fechadura, ela caiu da sua mão. Depois de respirar fundo, apanhou a chave, trancou a porta e subiu ao seu quarto para recobrar a calma. Mas seus nervos estavam em frangalhos, não conseguiu se tranquilizar. Notando que a chave do gabinete estava manchada de sangue, esfregou-a duas ou três vezes, mas o sangue não saiu. Tentou lavá-la e esfregá-la com areia e saibro também. Mas o sangue não saía, pois a chave era encantada e não havia meio de remover aquela mancha. Quando se conseguia limpar o sangue de um lado da chave, ele reaparecia no outro.
     Barba Azul chegou de sua viagem naquela noite mesmo, dizendo que a caminho recebera cartas lhe informando que o negócio que exigira a sua presença fora concluído de maneira vantajosa para ele. Sua esposa fez tudo que pôde para lhe demonstrar que estava radiante com seu rápido retorno. No dia seguinte, ele pediu as chaves de volta e ela as devolveu, mas com uma mão tão trêmula que ele adivinhou facilmente tudo que acontecera.
     "Por que a chave do gabinete não está com as outras?" ele perguntou.
     "Com certeza eu a deixei lá em cima, sobre a minha mesa."
     "Não deixe de devolvê-la logo mais", disse Barba Azul.
     Após várias desculpas, ela teve de trazer a chave. Depois de examiná-la, Barba Azul perguntou à mulher:
     "Por que a chave está manchada de sangue?"
     "Não tenho a menor ideia", respondeu a pobre mulher, mais pálida que a morte.
     "Não tem a menor ideia", replicou Barba Azul, "mas eu tenho. Você quis entrar no gabinete! Muito bem, senhora, entrará nele e tomará seu lugar junto das damas que lá viu."
     Ela se jogou aos pés do marido, chorando e pedindo perdão, demonstrando um arrependimento verdadeiro por não ter sido obediente. Teria comovido um rochedo, bela e desesperada como estava. Mas Barba Azul tinha o coração mais duro que um rochedo.
     "Tem de morrer, senhora", ele lhe disse, "e imediatamente."
     "Já que tenho de morrer", ela respondeu, fitando-o com olhos banhados de lágrimas, "dê-me só um tempinho para eu fazer minhas preces."
     "Dou-lhe um quarto de hora", disse Barba Azul, "mas nem um segundo a mais."
     Quando ficou sozinha, ela chamou sua irmã e lhe disse:
     "Minha irmã Ana (pois era assim que ela se chamava), suba no alto da torre, eu lhe peço, e veja se meus irmãos estão chegando. Eles me prometeram que viriam hoje. se os vir, faça-lhes sinais para que se apressem."
     A irmã Ana subiu ao alto da torre e de vez em quando a pobre desesperada gemia: "Ana, minha irmã Ana, não está vendo chegar ninguém?"
     E a irmã Ana respondia: "Só vejo o sol coruscante e o capim verdejante."
     Então Barba Azul, com um grande cutelo na mão, gritou para a mulher a plenos pulmões:
     "Desça já, ou subirei aí."
     "Um momento, senhor, por favor", a mulher lhe respondeu, e logo perguntou baixinho:
     "Ana, minha irmã, não está vendo chegar ninguém?"
     E a irmã Ana respondeu:
     "Só vejo o sol coruscante e o capim verdejante."
     "Trate de descer depressa", gritou Barba Azul, "ou subirei aí."
     "Já vou!" respondeu a mulher, e implorou:
     "Ana, minha irmã, não está vendo chegar ninguém?"
     "Estou vendo", ela respondeu, "dois cavalheiros que vêm para este lado, mas ainda estão muito longe... Deus seja louvado!" ela exclamou um instante depois. "São os meus irmãos. Estou fazendo todos os sinais que posso para que se apressem."
     Barba Azul se pôs a gritar tão alto que a casa toda tremeu. A pobre mulher desceu e foi se jogar aos pés dele, debulhando-se em lágrimas, toda descabelada.
     "Isso não adianta nada", disse Barba Azul. "Você tem de morrer."
     Agarrando-a pelos cabelos com uma das mãos e com a outra erguendo o cutelo no ar, estava pronto para lhe cortar a cabeça. A pobre mulher, voltando-se para ele com olhos moribundos, suplicou que lhe desse um momento para se preparar.
     "Não", ele respondeu, "recomende a alma a Deus." E erguendo o braço...
     Nesse instante bateram à porta com tanta força que Barba Azul ficou simplesmente paralisado. A porta foi aberta, e logo viram entrar dois cavaleiros que, empunhando a espada, correram diretamente para Barba Azul. Reconhecendo os irmãos de sua mulher, um dragão, o outro mosqueteiro, ele saiu correndo para salvar sua pele. Mas os dois irmãos o perseguiram tão de perto que o agarraram antes que conseguisse chegar à escada. Atravessaram seu corpo com suas espadas e o deixaram cair morto. A pobre mulher, quase tão morta quanto o marido, nem teve forças para se levantar e abraçar os irmãos.
     Aconteceu que Barba Azul não tinha herdeiros e que assim sua mulher continuou na posse de todos os seus bens. Ela empregou parte da sua fortuna para casar a irmã Ana com um jovem fidalgo que a amava havia muito tempo. Outra parte na compra de patentes de capitão para seus dois irmãos. E o resto no seu próprio casamento com um homem muito direito que a fez esquecer o que sofrera com Barba Azul.

Fonte: http://www.justlia.com.br/2013/02/contos-de-fada-nao-tao-felizes/

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Fórmulas Magistrais #3 - Emulsões

     Hoje é dia de conhecermos a terceira publicação da série sobre fórmulas magistrais: as emulsões. Aproveite e boa leitura!

     IMPORTANTE: não tentem fazer isso em casa! Todas as fórmulas que serão descritas nessa série de postagens são para fabricação por profissionais da área. Fizemos as mesmas na faculdade sob supervisão de um professor.

Emulsões

Emulsões (cremes e loções cremosas) são mistura de dois líquidos imiscíveis, onde um deles está disperso no outro. Emulsões orais são normalmente dispersões do tipo óleo/água estabilizadas por um agente emulsionante, onde uma ou ambas as fases podem conter sólidos dissolvidos. Podem conter um ou mais princípios ativos. Os ativos sólidos podem também estar suspensos nas emulsões orais. Em emulsões do tipo o/a (óleo/água), a fase oleosa (fase dispersa) está dispersa como gotículas em uma solução aquosa (fase contínua).

Vantagens:
ü Permitem a administração de fármacos líquidos oleosos e de fármacos lipofílicos dissolvidos em óleo.
ü Não possuem a fase externa aquosa, por isto mascaram de maneira efetiva o sabor pouco agradável de alguns fármacos (como vitaminas lipossolúveis, óleo de rícino, óleo mineral e o óleo de fígado de bacalhau).
ü A fase externa aquosa apresenta maior palatabilidade e, portanto, podem ser flavorizadas.
ü A suspensão de fármacos insolúveis em um veículo emulsionado, permite obter formas de ação sustentada (suspensão emulsão), programando a liberação e a absorção dos mesmos.
Desvantagens:
ü São sistemas termodinamicamente instáveis (fases tendem a separar-se com o passar do tempo).

Características de uma boa emulsão
ü Pequenas gotículas: o tamanho das gotículas dispersas é influenciado por fatores mecânicos (método e equipamento utilizado para a mistura e cisilhamento das duas fases), pela técnica e pelos agentes emulsificantes.
ü Lenta agregação (coalescência) das gotículas dispersas, lenta cremagem (formação de nata) caracterizada pela aglomeração das gotículas dispersas na superfície (líquido disperso mais leve que o dispersante da preparação) ou lenta sedimentação no fundo (líquido dispersado mais pesado que o dispersante).
ü Se houver coalescência, ocorre uma ruptura completa e irreversível da emulsão com a separação completa das fases.
ü Se houver apenas cremagem ou sedimentação, a homogeneidade pode ser facilmente restabelecida por simples agitação.
ü A velocidade de cremagem e sedimentação seguem a Lei de Stokes.
ü Facilidade de redispersão com agitação.

Aditivação de princípios ativos em emulsões
0/A - Óleo / Água: fase interna óleo e externa água. Sensação menos oleosa, refrescância e absorção rápida. A água é a fase externa e está em contato com a pele.
A/O - Água / Óleo: fase externa óleo e interna água. Sensação mais oleosa. O óleo é a fase externa em contato com a pele.
Obs: Para descobrir se a emulsão é O/A ou A/O, acrescentar água e corante: se homogeneizar com a coloração a fórmula é aquosa; se não, é oleosa.

Componentes de Emulsões
ü Fase aquosa: água deionizada, pois o cálcio e o magnésio desestabilizam a emulsão. Depois são acrescentados os componentes solúveis, os conservantes, os edulcorantes e os aromatizantes. Nesta fase devem ser solubilizados todos os ingredientes hidrossolúveis da formulação.
ü Fase oleosa: constituída por óleos (óleo fixo, mineral, volátil ou óleo resina) ou ceras, nos quais serão acrescentados e solubilizados os ingredientes lipossolúveis.
ü Agente emulsificante: dá estabilidade à emulsão, reduzindo a tensão superficial entre o óleo e a água e retardando a separação das fases.
ü Conservantes: os conservantes previnem o crescimento de fungos e bactérias na preparação. Preferencialmente, devem ser adicionados na fase aquosa, uma vez que esta é mais susceptível à contaminação microbiana. Outros componentes da emulsão, além da água, podem favorecer o crescimento de microrganismos, tais como, agentes emulsificantes naturais (ex.: goma arábica, goma adraganta, etc), óleos como o de amendoim (podem conter espécies de Aspergillus) e parafinas líquidas (podem conter espécies de Peniciíiium). É bom lembrar que alguns agentes emulsionantes podem diminuir ou até mesmo, neutralizar o efeito de determinados conservantes (ex.:tween 80 e parabenos). Contaminantes podem ser introduzidos em uma emulsão pelos ingredientes, equipamentos (não adequadamente sanificados) ou recipientes (não devidamente sanificado ou vedado).
ü Essências, flavorizantes e/ou corantes: emulsões Orais normalmente contêm agentes flavorizantes e raramente são utilizados corantes. Deve se utilizar somente corantes permitidos para uso sistêmico. Em emulsões orais os flavorizantes e corantes devem ser hidrossolúveis, a fase externa é aquosa.
ü Antioxidantes: previnem os processos de degradação por oxidação dos óleos e gorduras. Eles devem ser, preferencialmente, solúveis na fase oleosa (ex.: BHT, BHA, Palmitato de Ascorbila, Vitamina E), entretanto, pode-se utilizar antioxidantes na fase aquosa (ex.: Acido Ascórbico, Metabissulfito de Sódio e Bissulfito de Sódio).
ü EHL (equilíbrio hidrófilo-lipófilo): é o equilíbrio entre as fases aquosa e oleosa.
ü Sequestrantes: substâncias que complexam íons metálicos, inativando-os em sua estrutura, impedindo deste modo sua ação danosa sobre os outros componentes da formulação. Age em sinergismo com os conservantes.

Preparo de Emulsões (procedimento geral)
ü Aquecer todos os componentes óleo solúveis à cerca de 70 a 75°C
ü Aquecer todos os componentes hidrossolúveis, à cerca de 70 a 75°C
ü Adicionar uma fase à outra, lentamente, agitando (a fase com maior quantidade sobre a de menor quantidade)
 Adicionar corantes, essências, hormônios, vitaminas, bioativos (matéria prima de natureza orgânica em geral) quando esfriar a cerca de 30°C



Para preparar o sabonete íntimo iremos usar:

ácido esteárico .................................... 4%
monoestearato de glicerila ................... 6,5%
vaselina líquida .................................... 12%
metilparabeno ....................................... 0,1%
propilparabeno ...................................... 0,05%
trietanolamina ........................................ 0,5%
propilenoglicol ........................................ 5%
água purificada .................... q.s.p* .......... 100g

    * q.s.p. = quantidade suficiente para

     Mas, afinal, para que serve cada um destes produtos?


ü Ácido esteárico – agente de consistência
ü Monoestearato de glicerila – agente emulsificante usado para promover ou manter a dispersão finamente subdividida em partículas de um líquido em um veículo no qual ele é imiscível. O produto final pode ser uma emulsão líquida ou emulsão semi-sólida (ex.: creme)
ü Vaselina líquida – é utilizada principalmente como excipiente em formulações tópicas, onde exerce ação emoliente. É utilizada também como solvente
ü Metilparabeno – conservante antifúngico
ü Propilparabeno – conservante anti-fúngico usado em preparações líquidas e semi-sólidas (cremes, pomadas, etc) para prevenir o crescimento fúngico. A efetividade dos parabenos é normalmente aumentada quando eles são utilizados em combinação
ü Trietanolamina – surfactante aniônico (sal orgânico) que em água possuí ação tensoativa aniônica, agente alcalinizante usado em preparações líquidas para alcalinizar o meio com o objetivo de fornecer estabilidade ao produto, agente utilizado para ajustar pH ou para tamponar
ü Propilenoglicol – tem sido amplamente utilizado como solvente, extrator e conservante em uma grande variedade de formulações farmacêuticas de uso parenteral ou não-parenteral. É utilizado como doador de viscosidade e para aumentar o tempo de permanência da droga na superfície cutânea. Apresenta ação antisséptica similar ao etanol, porém um pouco menos efetiva. O propilenoglicol é também utilizado em cosméticos como umectante, como veiculo de emulsificantes e flavorizantes
ü Água purificada – usada como veículo


Como o professor pediu para fazermos só 50g, calculamos quanto de cada matéria vamos usar na preparação da emulsão.
Ácido esteárico à
50g   –  100%
 x       –      4%
x = 2g

Meg à
50g   –  100%
 x      –   6,5%
x = 3,25g

Vaselina líquida à
50g   –  100%
 x       –    12%
x = 6g

Metilparabeno à
50g   –  100%
 x      –   0,1%
x = 0,05g

Propilparabeno à
50g   –   100%
 x       –   0,05%
x = 0,025g

Trietanolamina à
50g   –  100%
 x       –    0,5%
x = 0,25g

Propilenoglicol à
50g     –  100%
 x      –    5%
x = 2,5g

Somamos todos os valores obtidos das matéria e subtraímos pela quantidade de produto que iremos preparar para saber quanto q.s.p. iremos usar (subtraímos a quantidade de q.s.p pela quantidade de matéria-prima para saber quanta água usar).
Ácido esteárico à
Meg à
Vaselina líquida à
Metilparabeno à
Propilparabeno à
Trietanolamina à
Propilenoglicol à
2g
3,25g
6g
0,05g
0,025g
0,25g
2,5g





q.s.p. à
matéria-prima à





50g
14,075g
Total de matérias-prima à
14,075g
H2O purificada à
35,025g

Depois de pesados todos os ingredientes, em um béquer colocamos todos os ingredientes de fase aquosa (metilparabeno, trietanolamina, propilenoglicol e água purificada) e em outro béquer colocamos todos os ingredientes de fase oleosa (ácido esteárico, monoestearato de glicerila, vaselina líquida e propilparabeno).
Levamos o béquer com a fase aquosa para aquecimento. Quando a fase aquosa atingiu entre 67° – 70°C, levamos o béquer com a fase oleosa para aquecimento. Quando as duas fases chegaram a 75°C, vertemos a fase aquosa na fase oleosa.

Com a ajuda do pão duro misturamos as duas fases sem parar até chegar a uma temperatura inferior a 40°C.